O caminho do e-lixo

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Valor de venda dos componentes e falta de fiscalização fazem com que o comércio ilegal cresça sem controle. Num lixão de Gana, carcaças de computadores espalhadas em meio a todo tipo de dejetos chamam a atenção por etiquetas que identificam sua procedência: delegacias, conselhos públicos e até universidades britânicas. O mesmo acontece em lixões da China, com produtos oriundos de Europa ou EUA. Já na América Central, um navio saído dos EUA passa por países pobres tentando encontrar um terreno que aceite o depósito do que dizem ser fertilizante, mas que na verdade são cinzas de produtos eletrônicos. O material, rico em arsênio, chumbo e outras substâncias tóxicas, é parte jogado numa praia do Haiti e parte atirado no oceano.

Não tão distante, 353 toneladas de resíduos de televisores são trazidos dos EUA em contêineres ao Porto de Navegantes, em Santa Catarina. O objetivo é o mesmo do tráfico ilegal de resíduos eletrônicos para Gana, China, Haiti e outros países de África, Ásia ou América Latina: por um lado, lucrar com a venda; e, por outro, descartar o lixo longe de seu local de origem, evitando os custos com a reciclagem e os danos ambientais.

Só no ano passado, 41,8 milhões de toneladas de resíduos eletrônicos foram geradas no mundo, mas apenas 6,5 milhões foram tratadas da forma ideal, segundo estudo da Universidade das Nações Unidas (UNU). Enquanto isso, o valor de venda dos componentes desses produtos faz com que o tráfico cresça sem controle, no mesmo ritmo em que aumenta o consumo de celulares, notebooks, televisores e outros equipamentos.

FISCALIZAÇÃO FALHA

A dificuldade em monitorar o fluxo deste resíduos facilita o negócio. Muitos países, o Brasil inclusive, ainda não têm uma legislação plenamente ativa para controlar o descarte de eletrônicos. A UNU estima que apenas 4/7 da população mundial esteja coberta por leis referentes ao tratamento de lixo eletrônico.

— O crime organizado tem se diversificado e investido em resíduos. É um negócio lucrativo e sem riscos, pela falta de monitoramento. Globalmente, não sabemos para onde o lixo eletrônico está indo — afirma Christian Nellemann, chefe de Unidade de Resposta Rápida do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). — Eu ficaria surpreso se soubesse que o Brasil não está nesta rota ilegal e internacional, tendo em vista o consumo de eletrônicos em larga escala e a presença do crime organizado no país.

No Brasil, a importação de resíduos sólidos perigosos foi proibida definitivamente desde a promulgação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, em 2010. Ainda assim, tenta-se burlar a lei. Nos últimos cinco anos, o Ibama interceptou cerca de 500 toneladas de resíduos eletrônicos entrando no país ilegalmente por portos e fronteiras, e as cargas foram devolvidas à origem — como em 2013, quando 353 toneladas de resíduos de televisores foram barrados no Porto de Navegantes. Há problemas, contudo, de fiscalização. — O fato é que o investimento na fiscalização das fronteiras é irrisório — afirma Élcio Ferretto, auditor fiscal da Receita Federal do Brasil em Quaraí, Rio Grande do Sul. — Nosso município tem cerca de 300 quilômetros de fronteira com o Uruguai. Na Receita Federal há dois auditores-fiscais e quatro analistas tributários. Há apenas um posto da Polícia Federal, e os agentes cuidam apenas da documentação de imigração, das 7h às 19h. Essa é a realidade de praticamente todos os pontos de fronteira do país: pouco recurso e muito interesse oportunista. E é elevadíssimo o fluxo ilegal de lixo vindo do Uruguai. Poucos meses atrás, apreendemos nove toneladas de baterias veiculares usadas, que entraram transportadas por carroças.

Fora do Brasil, os crimes também se acumulam. O documentário “The e-waste tragedy”, da alemã Cosima Dannoritzer, foi exibido no Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, em Goiás, no início do mês. No filme, a cineasta mostra computadores com identificações de instituições britânicas depositados num lixão de Accra, capital de Gana. Procuradas por Cosima, as instituições não souberam dizer como os equipamentos tinham sido levados para a África. O filme também narra um crime famoso: o cargueiro Khian Sea saiu da Pensilvânia, nos EUA, em 1986, levando 14 mil toneladas de cinzas de eletrônicos, e percorreu seis países, que se recusaram a receber o material. Por fim, metade foi depositado no Haiti e outra metade sumiu misteriosamente em alto mar.

O Khian Sea foi uma das motivações para a realização, em 1989, da Convenção de Basileia, na Suíça, dedicada justamente à comercialização de lixo tóxico entre os países. Segundo o tratado assinado no fim da convenção, cada país deve ser responsável pela gestão interna destes resíduos. O Brasil é signatário de Basileia, e um acordo setorial específico para o lixo eletrônico começou a ser desenvolvido em 2011, mas um impasse entre governo e empresas vem atrasando sua conclusão.

— Acredito que, entre os empresários, a visão ainda é a de que tratar o lixo eletrônico corretamente é um custo. É uma pena. Acho que os governos podem ser a alavanca para esta mudança, dando preferência, em editais, a empresas que fazem esse tratamento corretamente, por exemplo — afirma Cássio Lopes, coordenador do Comitê de Eletroeletrônicos do Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre).

GOVERNO QUER ACORDO ATÉ FIM DO ANO

A polêmica que impede a assinatura do acordo está centrada em pontos como o financiamento para a reciclagem e a transferência de propriedade do bem descartado.

— Nossa expectativa é que resolvamos o impasse até o fim do ano — afirma Zilda Veloso, diretora de Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente. — Agora, é importante que as empresas entendam que o acordo vai ser finalizado de qualquer jeito. Se não concluirmos sua negociação, as regras serão definidas por decreto.

Na prática, o acordo regulamenta regras da Política de Resíduos Sólidos, como a responsabilidade compartilhada entre empresas, consumidores e órgãos públicos para a reciclagem.

— Quando o acordo passar, poderemos saber com precisão a quantidade de lixo eletrônico que é recolhida e reciclada no Brasil — diz Ademir Brescansin, gerente de Sustentabilidade da Associação Brasileira de Indústria Elétrica e Eletrônica. — Mas hoje, mesmo sem o acordo, nossos associados já possuem sistema para recolhimento de lixo eletrônico, alguns mais avançados, outros menos.

Enquanto o acordo não é concluído, o lixo eletrônico já segue um caminho natural de comércio. Desde 2010, o Ibama autorizou mais de 14 mil toneladas de resíduos eletrônicos para exportação. Esse material costuma passar por catadores ou ferros-velhos. A cooperativa carioca E-Lixo, por exemplo, recebeu 60 toneladas de lixo eletrônico no mês passado e, num galpão em Vigário Geral, desmontou os produtos para venda em cinco categorias: placas eletrônicas, alumínio, ferro, plástico e fios de cobre. As placas vão para uma empresa exportadora que as vende para a China.

Nessa cadeia, também está Levi Silveira, proprietário de um ferro velho em Bonsucesso há 40 anos. Para ele, um eletrônico é um “filé”, gíria para boa mercadoria: — Compro e vendo mercadorias no varejo e com atravessadores. As placas-mães vão para São Paulo e, depois, para Holanda e China.




Veículo: Jornal O Globo


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