O bife com pedigree

Leia em 9min 30s

Os grandes supermercados prometem não comprar de fazendas que desmatam. Vai dar certo?


 
Está cada vez mais difícil consumir um bom bife inocentemente. Primeiro, foi o patrulhamento da saúde, que associou a carne vermelha bovina ao consumo excessivo de gorduras e hormônios, potencialmente perigosos ao organismo. Agora vem uma onda ambiental, que mostra como a pecuária brasileira, principalmente na Amazônia, está ligada a práticas como o desmatamento ilegal e a invasão de terras públicas. Nas últimas semanas, reagindo à pressão de consumidores e investidores, grandes varejistas decretaram medidas para restringir a compra de carne de frigoríficos em áreas suspeitas e melhorar o rastreamento do produto. O Carrefour, o Wal-Mart e o Pão de Açúcar detalharam um sistema de auditoria independente para garantir que a carne que compram não venha de regiões de desmatamento. A Nike anunciou que suspendeu a compra de couro da Amazônia. E o Ministério da Agricultura anunciou um plano ambicioso para regularizar o setor da pecuária. Essas medidas vão funcionar?

 

Regularizar a pecuária ilegal ou clandestina é um passo importante para o Brasil. O setor de criação de gado é considerado estratégico para o governo e já é o principal agente do mercado mundial de carne. Mas a atividade também está ligada às principais atrocidades ambientais no norte do país. Não só o desmatamento (a pecuária é responsável por 80% do problema na Floresta Amazônica), como também a exploração de trabalhadores. Cerca de 60% das fazendas autuadas por trabalho análogo à escravidão eram voltadas à pecuária. Todos os anos, cerca de 17 milhões de cabeças de gado são abatidas sem qualquer fiscalização. Isso quer dizer que um terço dos 50 milhões de cabeças abatidas por ano não tem certificação sanitária nem definição de origem e pode vir de áreas de floresta desmatada. Em um país com dimensões continentais e um rebanho de aproximadamente 200 milhões de animais, a fiscalização não é fácil. Tanto que o esforço para combater esses crimes é feito há décadas e o resultado até o momento foi pífio. A diferença é que, agora, a demanda vem dos grandes compradores, e não só do governo.

 

Um terço dos 50 milhões de bois abatidos por ano no Brasil não tem fiscalização

 

Por isso, o cerco nunca foi tão fechado. Primeiro, a organização ambientalista Greenpeace soltou, no início de junho, um relatório ligando grandes empresas internacionais a fornecedores de produtos bovinos que atuam em áreas desmatadas ilegalmente. Paralelamente, o Ministério Público Federal (MPF) do Pará entrou com uma ação contra 32 fazendas e frigoríficos e recomendou a 69 empresas que não comprem produtos de áreas de desmatamento, sob risco de multa. Para que as ações fossem retiradas, o MPF exigiu a assinatura de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) em que as empresas se comprometem a não desmatar mais, não comprar gado de áreas desmatadas, apresentar um mapa de cada propriedade, além de garantir a licença ambiental e a regularização da posse das fazendas. Foi o suficiente para que o mercado se alvoroçasse. As três principais redes varejistas do país – Carrefour, Pão de Açúcar e Wal-Mart –, responsáveis por 40% dos supermercados, anunciaram um embargo aos produtos vindos do Pará. Contrataram a SGS, empresa suíça que implantou a certificação de carnes na Inglaterra, para auditar os documentos de seus fornecedores. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento anunciou um plano para assegurar a origem do gado. “Nós pretendemos acabar com o desmatamento no Pará em até dois anos”, disse o ministro Reinhold Stephanes. O plano do governo prevê o registro eletrônico de todos os bois do Estado, um banco de dados com as informações coletadas, fiscais em todos os frigoríficos e monitoramento por satélite das fazendas, que será capaz de detectar desmatamentos de um hectare, o equivalente a um campo de futebol.

 

No Pará, as terras registradas irregularmente equivalem a quatro vezes a área do Estado

 

Os pecuaristas reconhecem que o modelo atual – de pecuária extensiva, com baixa produtividade e fiscalização escassa – é impraticável, mas se dizem preocupados com as exigências. “Apesar de bem-intencionado, o MPF fez exigências impossíveis, como regularização fundiária em cinco anos”, afirma Péricles Salazar, presidente da Associação Brasileira de Frigorifícos (Abrafrigo), grupo dos frigoríficos voltados para o mercado interno. “Os frigoríficos não têm poder de polícia. Estão jogando para as empresas a responsabilidade pela fiscalização, que deveria ser incumbência do governo”, diz.
Além disso, mesmo o melhor sistema de rastreamento tem falhas. Salazar diz que as promessas dos supermercados são jogada de marketing. “No panorama atual, é impossível o rastreamento de todos os animais, como o varejo deseja.” A base das incertezas no campo é a bagunça fundiária na Amazônia. Nas décadas de 1960 e 1970, o governo incentivou o desmatamento e o povoamento na Amazônia e doou escrituras sem critérios rígidos. Com o tempo, a situação se agravou. Segundo o MPF, 6.102 títulos de terra registrados nos cartórios do Pará contêm irregularidades. Outro levantamento, do Instituto de Terras do Pará, o Iterpa, descobriu cerca de 3 mil títulos de terras com mais de 2.500 hectares inconstitucionais. São terras públicas irregularmente tituladas para fazendeiros, a maioria pecuaristas. A área dos títulos se sobrepõe. Juntos, somam o equivalente a quatro vezes o território do Pará.

 

Mato Grosso do Sul, que não tem tantos problemas fundiários como o Pará, é citado por especialistas como um modelo para certificação da origem animal. Os motivos que levaram o Estado a se mobilizar, no entanto, foram sanitários, e não ambientais. Em 2005, as exportações do Estado foram vetadas pela União Europeia por causa de focos de febre aftosa. Para reconquistar a credibilidade, o governo estadual instalou um sistema de monitoramento das fazendas por satélite. Nas fronteiras com o Paraguai e a Bolívia, consideradas mais críticas, o gado recebeu um “brinco” eletrônico com informações sobre o animal, seu criador, além de um dispositivo que permite localizá-lo por satélite. Segundo a secretária de Produção e Turismo do Estado, Tereza Cristina Corrêa, cerca de 800 mil animais receberam o dispositivo. A intenção é implantá-lo nos 22 milhões de cabeças do rebanho. “O custo é de R$ 8 por animal. Para não pesar sobre os pequenos pecuaristas, estamos procurando parcerias com o governo federal e linhas de crédito com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)”, afirma Tereza. O plano, segundo ela, é que em quatro anos todos os bois estejam rastreados.

 

Mato Grosso do Sul está instalando brincos eletrônicos nos bois, para monitorá-los por satélite

 

Apesar das dificuldades, há razões para acreditar que as exigências de vigilância sobre os produtores de carne não serão relaxadas nos próximos anos. Elas fazem parte de uma tendência internacional de aumentar o controle sobre os impactos ambientais e sociais das cadeias de produção. A rede americana Wal-Mart, o maior grupo varejista do mundo, anunciou há duas semanas que vai começar a classificar seus mais de 100 mil fornecedores em todos os países onde atua segundo uma lista de perguntas socioambientais. A meta do Wal-Mart é, a partir de 2010 ou 2011, rotular os produtos e dispô-los nas lojas com esses critérios. “Não sabemos ainda se serão etiquetas com cores ou uma classificação de 1 a 10, mas o consumidor terá como escolher o produto segundo seu desempenho socioambiental”, diz Daniela De Fiori, vice-presidente de assuntos corporativos do Wal-Mart no Brasil.

 

É possível que toda essa vigilância tenha um impacto no preço final da carne – e ninguém sabe como o consumidor brasileiro vai reagir a isso. Hoje, segundo uma pesquisa do Instituto Akatu, o consumidor não considera valores ambientais ou sociais como diferencial na compra. Mas isso pode mudar, como já ocorreu em países europeus. Além disso, o impacto no preço é transitório. “A experiência mostra que os produtos com diferencial ambiental ou social podem ficar até 20% mais caros”, diz Marco Quintarelli, consultor de varejo e diretor da Associação Brasileira de Marcas Próprias. Ele diz que, no início, apenas um grupo de consumidores da elite paga por esses produtos. Mas, à medida que a produção cresce e os sistemas de controle são absorvidos pela cadeia, os preços caem. “A autorregulação será cada vez maior, principalmente em cadeias sensíveis, como a da carne”, diz Quintarelli. “É um caminho sem volta.”

 

Os problemas da pecuária

 

Como os bois na Amazônia estão ligados à devastação
 


TERRAS ILEGAIS
Estima-se que 96% das fazendas na Amazônia Legal estejam em terras irregulares. Cerca de 36% da carne nacional vem de lá 

 

DESMATAMENTO ILEGAL
Estima-se que 80% da devastação fora da lei na Amazônia seja para abrir novos pastos 

 

TRABALHO IRREGULAR
Cerca de 60% das autuações dos fiscais federais por trabalho análogo à escravidão ocorrem em fazendas de pecuária 

 

UMA PROXIMIDADE SUSPEITA
Os municípios com os principais frigoríficos e abatedouros da Amazônia (em Vermelho) ficam muito próximos das áreas com concentração de fazendas embargadas por crimes ambientais (em Amarelo) e das áreas com concentração de disputas de terras e propriedades irregulares (em Verde) 


Dá para vigiar os bois?

 

O que os supermercados querem fazer. E os limites do plano

 

COMO SERÁ A FISCALIZAÇÃO...

 

1 - Fazenda
Tem de apresentar a GTA, espécie de carteira de identidade do animal, junto com certificado de regularização de posse e licença ambiental do Ibama 

 

2 - Abatedouro
Deve mostrar aos frigoríficos os documentos sobre a procedência do gado. Esses documentos serão auditados por uma empresa independente 

 

3 - Frigorífico
O frigorífico, que muitas vezes é o próprio abatedouro, se compromete a cobrar esses documentos dos abatedouros e ser auditado também 

 

4 – Supermercado
Supermercados, por sua vez, contrataram a empresa SGS para auditar toda a documentação recolhida durante a cadeia produtiva do gado 

 

...E ONDE ELA TEM FALHAS

 

1 – Fazenda
Pode forjar ou subornar autoridades para conseguir certificados de proteção ambiental, regularização da posse de terra, além de comprar gado de outras fazendas ilegais. É grande o histórico de fraudes na documentação 

 

2 - Abatedouro
Não tem como saber que o boi, vindo de uma fazenda regularizada, não foi criado em área de desmatamento e depois “esquentado” em uma fazenda legal. Também pode aceitar de boa fé documentos falsificados 

 

3 - Frigorífico
Pode revender ao supermercado carne de um abatedouro dizendo que é de outro. Também pode aceitar de boa fé documentos falsificados 

 

4 - Supermercado
Nem todos os varejistas aderiram ao programa. Além disso, a auditoria será feita com base na documentação provida pelos elos da cadeia da carne, e o histórico de fraudes nesses papéis é extenso 

 

Veículo: Revista Época


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