Em meio às dificuldades financeiras do Tesouro Nacional, às voltas com rombos bilionários, o governo vem buscando eliminar como pode os ralos por onde escoam os recursos da União. Um dos problemas mais recorrentes são as fraudes cometidas contra a Previdência. De acordo com o Ministério da Fazenda, desde 2003, foram surrupiados cerca de R$ 5 bilhões dos cofres do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) por meio de esquemas montados visando o recebimento irregular de benefícios. Na tentativa de barrar os desvios, agentes de Previdência, da Polícia Federal e do Ministério Público reforçam a fiscalização. Somente neste ano, operações especiais contra fraudadores resultaram numa economia de R$ 300 milhões para as contas públicas.
Em 90% dos casos de fraude na obtenção de benefícios, foram utilizados documentos falsificados, entre eles certidões de nascimento, casamento e óbito. O coordenador da Assessoria de Pesquisa Estratégica e Gerenciamento de Riscos (APEGR) da Fazenda, Marcelo Henrique de Ávila, explica que, como ainda não foi implantado o Sistema de Informações de Registro Civil (SIRC), que prevê integrar as informações dos cartórios de todo o país, qualquer pessoa pode, hoje, com duas testemunhas, obter o registro tardio de certidões de nascimento, por exemplo. O processo pode ser repetido nos diferentes estados da Federação. “Na prática, uma mesma pessoa pode ter 27 RGs diferentes. É preciso integrar todas as bases de dados no país. O processo poderia até ter um custo alto no primeiro momento, mas o prejuízo que estamos levando supera em muito esse gasto”, frisa Ávila. “A estimativa de R$ 5 bilhões desde 2003 é apenas uma amostra da quantia que é desviada. Esse número é muito maior”, considera.
Com a integração dos dados, acredita Ávila, seria possível prevenir golpes em que registros civis falsos são utilizados para sacar benefícios previdenciários indevidamente, como aposentadorias e pensões. Os golpistas aproveitam a capilaridade nacional da rede de agências do INSS para burlar a fiscalização. “No mês passado, prendemos, no Espírito Santo, um falso viúvo que recebia ilegalmente R$ 60 mil por mês. Ele criou identidades falsas de 20 pessoas. Em seguida, falsificou certidões de casamento e também a morte das ‘esposas’, recebendo assim o benefício de pensão vitalícia da Previdência”, conta Ávila.
Conduta antiética
O estelionatário só foi descoberto depois que uma funcionária de uma financeira desconfiou da verdadeira identidade dele. “Ele fazia empréstimos consignados com esses nomes fictícios, mas uma financeira descobriu e comunicou ao banco, que acionou a Polícia Federal. Ele tentou um segundo empréstimo, com dois documentos falsos, mas a funcionária constatou que ele já tinha passado pelo local com outro documento”, disse o coordenador. O esquema teve a participação de uma servidora do INSS no Rio de Janeiro, onde os benefícios foram solicitados, em 2009. O prejuízo provocado pela fraude ultrapassa R$ 8 milhões. “Parte do rombo da Previdência é devido a pagamentos feitos a pessoas que não têm direito”, considera Ávila.
A advogada especialista em direito previdenciário Melissa Follmann chama a atenção para um problema do qual pouco se fala: a conduta antiética de quem recebe o benefício indevidamente. “Cada pessoa que recebe o benefício de forma fraudulenta retira e restringe o direito de outro e se torna tão culpado pela falha do sistema quanto o próprio Estado”, aponta. Ela observa que dados da Polícia Federal relativos a este ano mostram que os benefícios mais fraudados são os de aposentadoria, inclusive por tempo de contribuição. “A falsificação do tempo de contribuição pressupõe a cooperação de quem ganha o tempo sem ter trabalhado, ou contribuído efetivamente, e de quem insere dados falsos no sistema. Ou seja, aquele que não pagou a Previdência sabe o que fez, é consciente de que não tem direito e, ainda assim, se aposenta”, criticou.
Mais grave ainda, na visão de Melissa Follmann, é que o fraudador, ao ter o benefício cancelado, na maioria das vezes acaba não devolvendo nada ao Estado. “O argumento de que se trata de verba alimentar, e de que apessoa agiu de boa-fé, tem preponderado na Justiça”, afirma. A juíza Patricia Daher Lopes, da Justiça Federal, concorda e diz que existe jurisprudência sobre o assunto. “Como é uma verba alimentar, não é cabível devolução, mas essa decisão não é pacífica”, relata.
Divisor de águas
O caso mais notório, ainda lembrado 25 anos depois de ter sido descoberto, é o da maior fraudadora do INSS, Jorgina de Freitas. No fim da década de 1980 e no início dos anos 1990, ela liderou uma quadrilha de 25 pessoas, entre advogados, contadores, peritos e procuradores do INSS, que fraudavam pagamentos de acidente de trabalho a pessoas humildes, alguns inválidos, que nunca viram a cor do dinheiro. O golpe acontecia no momento dos cálculos das correções de benefícios e pagamentos de atrasados. O grupo surrupiou mais de R$ 1 bilhão dos cofres da Previdência. Até hoje, a Advocacia Geral da União (AGU) briga na Justiça para reaver todo o dinheiro. Cerca de R$ 160 milhões foram recuperados com a venda de bens e a repatriação de recursos do exterior.
O coordenador da APEGR conta que esse caso foi tão emblemático, por envolver a Procuradoria do INSS, que tornou clara a necessidade de criar um setor específico para investigar fraudes. “Foi um divisor de águas. Até então, eram investigações eventuais. Depois foi criada área de inteligência, com pesquisa estratégica feita por auditores do trabalho e uma força tarefa com agentes da Previdência, da Polícia Federal e do Ministério Público”, explica. “Isso diminuiu a burocracia na troca de informações, pois os investigadores trabalham boa parte do tempo no mesmo ambiente. Mesmo assim, os fraudadores se aprimoram. Quando implementamos controles novos, percebemos novas fomas de burla. Por exemplo: como desde o ano passado as pensões por morte têm carência de dois anos, eles colocam uma data de óbito bem anterior à real”, revela.
Em 15 anos de atuação, esse trabalho resultou em 462 operações e na prisão de 2.541 pessoas, das quais 441 eram do quadro de servidores. “Havendo a identificação de participação de funcionário do INSS, o caso é enviado para a Corregedoria, que abre procedimento administrativo, o qual pode resultar em demissão”, salienta Ávila. Ele revela que, dos servidores desligados da Previdência (órgão que tem o maior número de demissões na administração federal), 30% estavam envolvidos em fraudes. “Ao longo do tempo o envolvimento de servidores tem diminuído. O sistema de controle tem o caráter dissuasório para os fraudadores”, constata. O telefone 135 é um dos canais de denúncias, em que qualquer pessoa pode colaborar com o trabalho de combate à fraude. “As informações são tratadas sigilosamente. Com esse trabalho, nos tornamos referência em outros países”, ressalta Ávila.
Quadrilha agia no DF
O Distrito Federal teve a segunda maior operação contra fraudes previdenciárias feitas no país, a Lapa da Pedra, em junho de 2015. A força tarefa contou com 294 policiais federais e 58 servidores da Previdência Social, que participaram do cumprimento de 152 mandados de busca, sendo 70 de condução coercitiva. O grupo apanhado no desvio de recursos do INSS atuava na concessão de benefícios de aposentadorias rurais e urbanas por invalidez, idade, ou tempo de contribuição, além de pensões e auxílios-doença. As fraudes eram praticadas desde 2005 e deram um prejuízo de, pelo menos, R$ 31 milhões.
Lapa de Pedra é o nome de um sítio arqueológico em Formosa, cidade goiana vizinha ao DF, em que arqueólogos provaram a existência de paleoíndios, que deixaram marcas, símbolos e inscrições registradas em rochas há 4.500 anos. As buscas nos sistemas previdenciários verificaram as pistas sutis deixadas pelos servidores do INSS que, por vezes, alteravam e apagavam dados — o que propiciou o início das investigações.
Revisão polêmica
O governo pretende poupar mais de R$ 6,3 bilhões com o cancelamento de até 30% dos auxílios-doença e de 5% das aposentadorias por invalidez. Segundo os cálculos do INSS, essa é a proporção dos benefícios que teriam sido concedidos de maneira irregular ou não teriam mais justificativa para serem mantidos. Os segurados nessa condição terão que passar por perícia médica, segundo estabelecido em medida provisória. A revisão dos benefícios provoca polêmica. O senador Paulo Paim (PT-RS), por exemplo, afirma que a mudança nas regras é um grave ataque a direitos e pode colocar em risco a vida de trabalhadores.
Fonte: Jornal Correio Braziliense