Beto Lorenzato atende a reportagem, por telefone, de Roma, na Itália. Eleito deputado federal no país em março de 2018, vai exercer um mandato de cinco anos. Mas, duas vezes por mês, consegue uma brecha nos serviços do parlamento e viaja ao Brasil. A causa é nobre. “O amor ao vinho”.
O pedacinho da Itália na região de Ribeirão Preto, no qual ele se aconchega, está em Ituverava (SP), perto da divisa com Minas Gerais. Lá, Lorenzato encontrou, em 2006, as condições ideais para produzir uvas direcionadas a vinhos finos. Dois anos antes, havia comprado a propriedade para construir um haras. Mudou completamente de ideia num 13 de junho, data que homenageia Santo Antônio. “Não tenho dúvidas de que foi um milagre o que aconteceu”.
Percebeu que o dia era bastante ensolarado, mas, à noite, a temperatura caía bastante. De família tradicional na agricultura, sabia que essa amplitude térmica era propícia ao cultivo de uvas. Hoje, defende que o interior de São Paulo é a “melhor região do mundo” para a atividade. Principalmente a porção que vai de Ribeirão Preto (SP) até Franca (SP) e segue até Bauru (SP) – conhecida como cuestas paulistas. É uma área que está sobre o basalto, rocha rica em ferro que favorece a concentração de açúcar na fruta e, consequentemente, a obtenção de vinhos de qualidade.
Pioneiro em plantar uvas numa região tomada por canaviais, enfrentou a desconfiança de muitos no início. “Teve gente que disse que rasgaria o diploma de agrônomo se Ituverava desse uvas”. E deu. Na Fazenda Santa Maria, onde está localizada a Vinícola Marchese Di Ivrea, são plantadas quatro variedades de uvas italianas, em doze hectares.
Em novembro de 2006, quando o local recebeu as primeiras mudas, era apenas um hectare. O crescimento foi suficiente para que Lorenzato envasasse 50 mil garrafas por ano. Para os próximos dois anos, a meta é ampliar para 200 mil. Os novos equipamentos já estão chegando.
Aos sábados, a fazenda recebe visitantes interessados em passear pela plantação e degustar os seis tipos de vinhos que oferece, além de dois rótulos de grappa, uma aguardente de uva. Ele apresenta, também, um pouco da história da família – o trisavô foi um dos primeiros italianos a desembarcar na região, tendo produzido algodão em Dumont (SP). De dois anos para cá, quando abriu a Santa Maria para turistas, recebeu sete mil pessoas.
Dois detalhes
Além de fornecer os vinhos diretamente na fazenda, vende para alguns dos principais restaurantes do Brasil e exporta 7% da produção para os Estados Unidos. “O potencial das cuestas paulistas vai mudar toda a característica da produção de vinhos finos no Brasil”, profetiza. Segundo ele, isso só não aconteceu no passado por dois detalhes: primeiro porque, na região de Ribeirão Preto, por ter crescido amparada nos barões do café, a uva era vista como cultura menor, apenas para subsistência em pequenas propriedades.
O segundo foi a mudança, em 1888, de Luiz Pereira Barreto para São Paulo. Luiz era médico, especialista em ciências naturais, e liderou estudos relacionados a diversos vegetais, como o guaraná. Antes de ir para a capital paulista, onde foi deputado, fez experimentos com uvas no lugar onde fica a Fazenda Cravinhos, de Luiz Biagi, no município de mesmo nome, vizinho a Ribeirão. “Se não fosse o café e se Pereira Barreto não tivesse se mudado, a região poderia ser, hoje, terra de vinhos”, brinca.
A Cravinhos, no entanto, não saiu dos planos. Será uma das próximas fazendas a receber o cultivo. Lorenzato e Biagi fecharam uma parceria para plantar ali, em 2019, cinco hectares de uva. A ideia é construir, também, uma vinícola para que a propriedade esteja na rota do enoturismo, em que o visitante deguste vinhos e conheça um pouco da história agrícola da região. “A Fazenda Cravinhos merece dar continuidade ao trabalho que começou lá no século XIX, com o Pereira Barreto”, afirma Lorenzato.
Vinho, queijo e azeite
Perto dali, entre Ribeirão Preto e o distrito de Bonfim Paulista, está surgindo outro projeto audacioso. A construção da Vinícola Terras Altas já começou na Fazenda Vale Encantado, de 680 hectares e que pertence ao empresário José Renato Magdalena. Um dos objetivos do empreendimento é aliar turismo rural com desenvolvimento imobiliário, já que, perto da fazenda, estão nascendo, também, muitos condomínios.
Além da produção de uvas, da variedade francesa syrah – que, em alguns países da Europa, é grafada como shiraz –, a fazenda tem plantio de azeitonas e criação de cabras e gado leiteiro, da raça jersey, para a produção de queijos finos. De acordo com o agrônomo Ricardo Baldo, que presta serviços na propriedade, o visitante, com isso, poderá contar com uma vasta experiência gastronômica. “A proposta é que ele tenha vinho, azeite, queijo e outros tipos de produtos num só lugar.”
Os experimentos com a uva começaram em 2016. A cultura ocupa uma área de cinco hectares, irrigados por sistema de gotejamento. A primeira safra comercial será colhida em julho de 2019, ano em que a produção deverá saltar para dez hectares, o que será suficiente para produzir 100 mil garrafas por ano.
De oliveiras, são três variedades – uma espanhola, outra italiana e outra grega. Por enquanto, elas fazem parte de um sistema de validação de protocolo de cultivo, mas a fazenda pretende partir para escala comercial. O projeto prevê a construção de uma fábrica de azeite anexa à vinícola.
Baldo, que tem uma empresa de consultoria para a produção de carnes, mas, em breve, quer se dedicar totalmente aos negócios da fazenda, recebe orientações da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), que está disseminando, pelo Sul de Minas e pela região da Alta Mogiana paulista, a poda invertida da uva.
A técnica consiste em “enganar” a planta para evitar que ela produza duas safras por ano, como é de praxe, e dê frutos apenas uma vez, no inverno. Isso permite que encontre condições melhores para se desenvolver, como a ausência de chuvas, e ofereça maior teor de açúcar, fundamental para a qualidade do vinho.
Consumo
A Embrapa Uva e Vinho, com sede no Rio Grande do Sul, já havia feito um levantamento, em 2008, que demonstrou o potencial do interior de São Paulo para a produção de vinhos finos. Segundo o pesquisador Marco Antônio Fonseca Conceição, que atua na base paulista da empresa, localizada no município de Jales, observou-se, já naquela época, que lugares mais altos e com grande amplitude térmica eram favoráveis ao cultivo de uvas.
O investimento feito por produtores paulistas deve encontrar um mercado bastante favorável. Isso porque, de acordo com o Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), São Paulo é o maior consumidor de espumantes e vinhos fabricados no Rio Grande do Sul – que, por sua vez, é o maior produtor, respondendo por mais de 85% das bebidas desse tipo nacionais. Por causa da alta densidade populacional, São Paulo consomiu 27% dos vinhos e espumantes gaúchos em 2017 – o Rio de Janeiro comprou 19,5% e o próprio Rio Grande do Sul, 15,47%.
Não existem, no entanto, dados precisos sobre quanto São Paulo produz de vinho. Isso porque, segundo o Ibravin, o único levantamento feito no país sobre isso reúne, apenas, dados do Rio Grande do Sul, com subsídios do governo de lá. Há, porém, conversas na cadeia produtiva para que o governo federal financie, por meio do Ministério da Agricultura, um cadastro nacional, o que está em análise.
Terra de calçado e de uva
Enquanto isso não acontece, as experiências não param de acontecer. Em Franca, por exemplo, Maurício Orlov se divide entre um escritório de desenvolvimento de produtos calçadistas e duas áreas em que produz uvas syrah.
Há 25 anos, ele trabalhava em uma grande empresa de televisão quando foi deslocado para um serviço em Franca. Gostou tanto da cidade que acabou ficando. Amante dos vinhos, sempre acreditou que eles poderiam ser produzidos ali mesmo, onde mora. “Ouvia falar que, em terra que dá um bom café, como Franca, também dá uva”. Para testar a teoria, começou um projeto piloto com meio hectare em 2014. “Quando tivemos a certeza de que daria certo, resolvemos partir para a produção em escala.”
Outra área foi adquirida, em que ele plantou mais dois hectares. Ano que vem, a produção subirá para sete hectares. E as primeiras garrafas já estão prontas, produzidas na Epamig. Em breve, a Arcano Vinícola terá as próprias instalações, para que o envase seja feito ao lado da plantação. “Posso afirmar que o sul mineiro e o norte paulista serão, ainda, grandes polos de produção de uvas e de vinhos de qualidade.”
Fonte: G1 - Ribeirão Preto e Franca