Uma velha piada do mercado financeiro diz que o consumidor brasileiro tem um cromossomo a mais do que os 23 pares habituais. Essa anomalia genética lhe permite o uso do cheque pré-datado. Em nenhum outro país, um instrumento de pagamento como o cheque funciona, sem problemas, como um contrato informal de crédito. Outra jabuticaba financeira nacional é a venda parcelada no cartão de crédito com pagamentos de valor constante. O "parcelado sem juros" movimentou R$ 400 bilhões em 2017, o mesmo que os cartões de débito. E se essa prática fosse colocada fora da lei?
No início da semana passada, correu a notícia de que Banco Central (BC) e representantes do setor de pagamentos estavam avaliando a extinção do parcelado sem juros. A proposta, ainda em discussão, era trocar compulsoriamente esse financiamento por um empréstimo com juros, que seria concedido no momento da venda, diretamente na maquininha do cartão. A intenção é acabar com um dos vários subsídios cruzados na indústria. As vendas "sem juros" são cobertas pelas taxas elevadas que os bancos cobram de quem financia seus gastos no cartão de crédito. Essas linhas estão entre as mais caras do inóspito panorama dos juros brasileiros. Em dezembro, segundo o BC, custavam 334% ao ano. Os empréstimos parcelados, que desde abril de 2017 são concedidos automaticamente após 30 dias no rotativo, são mais baratos, mas ainda custam salgados 169% ao ano.
A decisão de alterar o parcelado sem juros está em linha com outras mudanças. No ano passado, o BC acabou com a exclusividade das bandeiras, que obrigava os comerciantes a pagar por várias maquininhas, e também limitou a 30 dias o prazo máximo de permanência do cliente no crédito rotativo, o mais caro. Desde abril de 2017, no 31º dia o empréstimo é automaticamente convertido para o crédito parcelado, mais barato. O impacto ainda não foi sentido: segundo dados do BC, a migração de empréstimos do rotativo para o parcelado desde a adoção da medida foi de R$ 500 milhões, em uma carteira total de R$ 19,2 bilhões. A eventual extinção do parcelado sem juros forçaria parte desses empréstimos a migrar para linhas mais baratas, com as do crédito pessoal, cujas taxas oscilam ao redor de 113% ao ano, ou mesmo do consignado, que custa 26% ao ano, em média.
O impacto da mudança sobre o varejo seria pesado. Pelas normas atuais, se um cliente vai a uma loja e comprar um terno de R$ 1.000 em cinco prestações de R$ 200, ele contrai uma dívida com a empresa de processamento de transações do cartão, que vai cobrar o banco do qual o cliente é correntista. Esse dinheiro será retirado da conta mensalmente e enviado ao comerciante, com uma espera que pode chegar a cinco dias. Já o lojista será credor da mesma empresa de adquirência. Se o comprador não pagar o banco, é ela quem terá de arcar com o prejuízo. "Se não fizer isso, o banco paga, e se o banco quebrar, a bandeira do cartão fica com a conta", diz Paulo Solmucci, presidente da Unecs e da Abrasel. Caso raríssimo, porém. "Nas compras com cartão a inadimplência é zero", diz ele.
Por isso, o varejo não quer nem ouvir falar da ideia. "Os bancos estão querendo proibir que os lojistas concedam financiamentos diretos", diz Solmucci. "O parcelado sem juros é uma prática consagrada pelo comércio, funciona bem e tem vantagens." Segundo Solmucci, o parcelamento permite que os varejistas com maior poder financeiro estabeleçam suas próprias políticas de crédito para o cliente. É uma prática muito difundida. Segundo dados da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços, que regulamenta o setor, as compras parceladas sem juros movimentaram R$ 400 bilhões no ano passado, praticamente metade das compras processadas por meio dos cartões de crédito. As transações com crédito e débito giraram R$ 1,2 trilhão em 2017.
Procurado, o BC não comenta, e os bancos afirmam que o assunto tem de ser tratado pela Abecs. A Associação também não discute o assunto. Reservadamente, porém, as declarações são saborosas. "O parcelado sem juros representa mais da metade dos pagamentos com cartões e ninguém é doido de querer mudar isso", diz um representante do setor. "Essa proposta é uma insanidade." O assunto promete.
Posicionamento da UECS
A União Nacional das Entidades de Comércio e Serviço, Unecs repudia a proposta da Abecs ao Banco Central (conforme reportado do jornal Valor Econômico no dia 30 de janeiro) em relação à criação de um Crediário para pôr fim ao parcelamento sem juros feitos diretamente pelos lojistas.
A entidade entende que o parcelamento é uma importante ferramenta à disposição do empresário para definir suas estratégias de preço e condições de pagamento.
"Defendemos que a discussão sobre um assunto dessa relevância não pode avançar sem envolvimento dos representantes do setor de comércio e serviços, em especial daqueles que representam os pequenos e médios negócios. O parcelamento lojista atualmente representa a melhor e mais batata forma de estimular o consumo", afirma o presidente da UNECS, Paulo Solmucci.
Fonte: E-commerce News e IstoÉ Dinheiro