Seis em cada dez empresas esperam fechar 2020 no positivo, diz pesquisa

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Poucos momentos mostraram-se tão desafiadores para as empresas brasileiras quanto a pandemia de covid-19. Praticamente tudo foi revisto dentro das organizações: de como vender os produtos a como comprar os insumos; de como atingir os clientes a como se relacionar com os empregados; das regras de higiene nas lojas à operação de comércio eletrônico. O grupo Carrefour no Brasil viveu intensamente o momento.

Com 700 lojas, a empresa foi obrigada a repensar tudo o que fazia. No início do isolamento social, os estoques de produtos foram reforçados, passando de 40 para 60 dias. A estratégia das promoções aos sábados, que garantia um impulso extra às vendas, foi cancelada para evitar aglomerações. Uma máquina que emite luz ultravioleta para higienizar os produtos foi instalada em cada loja.

A prática do home office, que não existia antes da pandemia, entrou na rotina dos funcionários da área administrativa, e a companhia estuda como adotá-la no pós-pandemia. “Foram 240 ideias implementadas em quatro meses em todas as áreas do negócio. Em tempos normais, seriam necessários dois anos para fazer as mudanças que fizemos”, diz Noël Prioux, presidente do Carrefour no Brasil.

No início da pandemia, os supermercados estavam entre os negócios essenciais que se mantiveram abertos — e as vendas, naturalmente, dispararam. No Carrefour, o faturamento aumentou 18% no segundo trimestre em comparação a 2019 e alcançou o valor de 17,3 bilhões de reais. O lucro no período avançou 75%. Não foi culpa do coronavírus, mas em plena pandemia o Carrefour também teve de enfrentar uma crise de imagem: no dia 14 de agosto, um funcionário de uma loja de Recife teve um mal súbito, morreu, e seu corpo foi coberto com guarda-sóis. O estabelecimento continuou funcionando normalmente e o episódio caiu nas redes sociais.

Assim como o Carrefour, cada empresa brasileira tem vivido de um jeito a crise da pandemia. Agora, seis meses depois que o mundo mudou em um grau que ainda não é possível precisar, já que a covid-19 continua ativa e matando milhares de pessoas no mundo inteiro todos os dias, as companhias calculam as perdas e os ganhos, listam as lições apreendidas e tentam projetar o que vem pela frente.

Uma pesquisa exclusiva EXAME/Bússola, elaborada pelo Instituto FSB com 1.000 empresas de todos os portes, traz uma ampla radiografia de como a pandemia afetou os negócios no país. Bússola é uma nova frente de conteúdo produzida pelo FSB e que passa a ser publicada nos canais da EXAME. O resultado da pesquisa é dramático: oito em cada dez empresas foram afetadas, o que provocou uma redução no faturamento de 55% dos CNPJs em atividade no Brasil. Um terço das companhias fechou todas as operações ou a maioria de suas unidades no auge da pandemia. Isso repercutiu diretamente no nível de emprego entre as empresas pesquisadas: 25% demitiram e 40% fizeram acordos de redução de salário e jornada.

Esses números retratam os momentos mais graves da crise. Mas a dinâmica de uma crise econômica gerada por uma pandemia é bem diferente dos choques cíclicos observados pelos economistas — um estudo da FGV publicado no ano passado analisou os últimos nove episódios recessivos no Brasil desde 1980 e, em geral, eles duraram sete trimestres para se completar, da queda à recuperação.

No caso da atual crise, a parada brusca se concentrou nos meses de março, abril e maio. As entrevistas realizadas pelo Instituto FSB, no meio de agosto, já foram capazes de capturar a mudança de sentimento: passados os meses mais críticos, seis em cada dez empresas esperam fechar 2020 pelo menos com o mesmo resultado obtido no ano passado — 29% do total, inclusive, projeta que terá uma receita maior neste ano.

“Mesmo entre os 55% de empresas que tiveram perda de faturamento devido à covid-19, 40% esperam recuperar o terreno e fechar o ano no mínimo empatado com 2019. É um claro sinal de aumento na confiança dos empresários na retomada dos níveis de consumo”, diz Marcelo Tokarski, sócio-diretor do Instituto FSB Pesquisa.

Essa expectativa positiva dos empresários já se reflete nos indicadores econômicos. Julho foi um mês de retomada. Setores que sentiram fortemente o impacto da crise do coronavírus, como o de serviços, começaram a dar os primeiros sinais de melhora. Em julho, o setor cresceu 0,8% em relação ao mês anterior, após uma queda acumulada de quase 20% desde o início da pandemia, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

As vendas do comércio, que sofreram um tombo durante a crise, também começaram a reagir, com um aumento de 1% em julho em comparação a junho. O índice de confiança do consumidor, elaborado pela Fundação Getulio Vargas, aponta para uma alta de 1,4 ponto em agosto, alcançando 80,2 pontos — o mesmo nível de março. Outro sinal de que o país parece ter voltado a respirar: o dado que mede a satisfação atual dos consumidores com a economia avançou 1,2 ponto.

Parecem poucas as conquistas que esses indicadores mostram frente aos estragos da pandemia, mas eles ilustram uma imagem comum: a queda foi pelo elevador, a retomada virá pela escada. O último boletim Focus, do Banco Central, que mede a expectativa do mercado financeiro, aponta para uma retração de 5,6%, diante dos 6,5% previstos há pouco tempo. Já para 2021 o produto interno bruto deve crescer 3,75%. Na pesquisa EXAME/Bússola, mais da metade dos empresários aponta que a economia deve apresentar expansão no ano que vem.

Boa parte desse otimismo é resultado da combinação de dois fatores: a reabertura da economia nas cidades, mesmo quando os números de contágio e mortes pela pandemia ainda aconselhavam cautela, e os efeitos positivos gerados pelo auxílio emergencial do governo federal. No município de São Paulo, que gera 10% do PIB do país, os shoppings já podem permanecer abertos 8 horas por dia, assim como as lojas de rua, os restaurantes, os salões de beleza e as academias. No Rio de Janeiro, até os cinemas voltaram a funcionar.

A previsão é que as aulas sejam retomadas no dia 14 de setembro nas escolas públicas e privadas cariocas. “As pessoas estão conseguindo retomar suas atividades em boa parte porque foram socorridas pelo governo por meio de medidas que se mostraram acertadas”, diz Maurício Endo, sócio líder da área de governo da KPMG no Brasil e na América do Sul. As perdas causadas pela postura negacionista do presidente Jair Bolsonaro são incalculáveis. Mas o benefício de 600 reais por mês — e que pode chegar a 1.200 mensais — alcançou mais de 66 milhões de brasileiros, que embolsaram no total 161 bilhões de reais até o dia 18 de agosto, segundo a Caixa Econômica Federal. Mais de 36 milhões de trabalhadores informais receberam 73 bilhões de reais.

Fundamentais para atender às demandas sociais na pandemia e evitar um mergulho ainda mais profundo na crise, os bilhões do auxílio emergencial expõem divisões profundas dentro do atual governo. Bolsonaro e seus aliados mais próximos descobriram na prática que uma injeção poderosa de recursos não apenas traz resultados rápidos para a economia como também se reverte em dividendos políticos. Na última pesquisa Datafolha, Bolsonaro teve uma aprovação recorde: 37% dos brasileiros consideram seu governo ótimo ou bom, e a rejeição ao presidente caiu 10 pontos percentuais. O auxílio também melhorou os índices de aprovação no Nordeste, onde o presidente perdeu nas eleições de 2018. Ou seja, esse dinheiro já faz parte da estratégia para a reeleição em 2022. Como a última parcela do auxílio está programada para setembro, o governo discute uma prorrogação do benefício, ainda que com um valor menor. Também é esperado para os próximos dias o lançamento do programa Renda Brasil, que substituirá o Bolsa Família, herdado dos anos petistas.

Do outro lado desse embate está o ministro da Economia, Paulo Guedes, defensor aguerrido do teto de gastos, regra constitucional criada em 2016 que limita o aumento das despesas públicas à inflação do ano anterior. Nas últimas semanas, uma sequência de sinais deixou claro o que muita gente sabia: é impossível cumprir o limite de gastos no nível de despesas assumidas sem reformas que tragam cortes nas despesas do governo.

A votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021, que deveria ter sido em julho, foi adiada por causa da pandemia. Em plena crise sanitária, o governo alegou ter ficado difícil estabelecer metas de receitas e despesas para o ano que vem. O prazo se encerra no final de agosto. A equipe liderada pelo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, tem defendido a ampliação de obras públicas como motor da retomada no pós-pandemia. Bolsonaro avisou que a reforma administrativa, que traria cortes ao funcionalismo público, ficou para 2021. “O presidente nunca pareceu ter comprado 100% o projeto liberal de Guedes”, diz o economista Alexandre Schwartsman. “E agora Bolsonaro descobriu as delícias de gastar dinheiro público.”

O adiamento detonou a saída de dois auxiliares próximos de Guedes: os secretários especiais Paulo Uebel, de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, responsável pelo projeto da reforma administrativa, e Salim Mattar, de Desestatização e Privatização, que não conseguiu vender nenhuma estatal federal desde o início do governo. A debandada, como definiu Guedes, expôs a fragilidade do tão proclamado liberalismo do governo Bolsonaro e disparou rumores de que o ministro da Economia também estaria de saída. “Como a chance de reeleição de Bolsonaro aumentou, Guedes começa a calcular que ele pode ter mais seis anos no cargo — e não apenas mais dois pela frente”, diz Christopher Garman, diretor executivo para as Américas da consultoria de risco político Eurasia.

Projeto morto, projeto posto. Na esteira de prioridades, sobrou a reforma tributária, cuja proposta o governo ainda não detalhou. Há outros dois projetos de parlamentares correndo paralelamente. E pouca confiança de que algo forte virá. “Na visão dos investidores, nacionais e internacionais, a articulação entre o Poder Executivo e o Congresso não avançou, e isso prejudica o andamento das reformas”, afirma André Castellini, sócio sênior da consultoria Bain & Company.

Na retomada que se desenha ainda em plena pandemia, o nível de emprego parece ser o pilar mais frágil. Atualmente, a taxa de desemprego passa de 13% e os desocupados já somam 12,2 milhões de pessoas. Em julho, o país criou 131.010 postos de trabalho, na primeira alta depois de quatro meses seguidos de saldo negativo. O resultado ficou acima das expectativas. Com o planejamento estratégico voltado para a retomada da economia, muitas empresas revisaram suas metas de curto e médio prazo — com o otimismo em alta, passaram a repensar as demissões. A pesquisa EXAME/Bússola traduz essa expectativa.

“O mercado de trabalho foi duramente afetado pela pandemia, mas chama a atenção o fato de que 67% das empresas nem demitiram nem pretendem demitir por causa da pandemia”, diz Tokarski. Ele lembra que, entre as que dispensaram parte da força de trabalho — 25% do total das empresas consultadas —, praticamente oito em cada dez afirmam que não pretendem mais reduzir seus quadros. “É mais um sinal de melhora na expectativa, indicando que, para os executivos brasileiros, o pior da crise econômica pode já ter passado”, afirma.

A Movile, dona do aplicativo de restaurantes iFood e da plataforma de eventos Sympla, mudou a maneira de administrar suas empresas para amenizar o impacto da crise sobre os funcionários. Como alguns negócios foram beneficiados pelas mudanças econômicas geradas pela pandemia — o iFood é um caso óbvio —, a Movile conseguiu absorver as perdas de outros sem cortar empregos. “O grau de incerteza segue alto, ainda não sabemos quando a pandemia vai acabar. Mas o momento em que estamos agora é de começar a virar a página, olhar para o próximo capítulo”, diz Patrick Hruby, presidente da Movile. “Estamos otimistas porque a empresa deve ser favorecida pela aceleração da digitalização que a covid-19 provocou. O Brasil pode ser um celeiro de empresas de tecnologia, e nós estamos investindo.”

A despeito dos imensos desafios na economia, muitas empresas olham agora para as lições aprendidas e para as soluções criadas num momento ímpar. Muitas descobriram que os caminhos para inovar podem ser diferentes. A Basf é bom exemplo. A multinacional alemã conseguiu uma proeza rara no meio industrial. Em abril, ainda no início da pandemia, em menos de duas semanas, começou a fabricar em suas plantas no Brasil um espessante que até então era produzido na Alemanha. A matéria-prima é fundamental para a fabricação de álcool em gel, que estava em falta no mercado.

“Houve um grande engajamento da equipe e conseguimos agilizar uma série de processos”, diz Antônio Lacerda, vice-presidente sênior da Basf no Brasil. Com o ganho de agilidade conquistado nos últimos meses, a empresa acelerou o calendário de lançamento de novos produtos. Pelo menos quatro produtos deverão ser lançados até o início do ano que vem, entre eles um emoliente usado por fabricantes de cosméticos e um químico que melhora a qualidade do asfalto. “Estamos aproveitando essa experiência para lançar novos produtos e ganhar mercado.”

A pandemia mexeu com o mundo dos negócios. Na pesquisa EXAME/Bússola, 66% das empresas promoveram adaptações ou inovações em novas formas de produção, comercialização ou prestação de serviços. Sete em cada dez promoveram corte de custos. Metade das empresas adotou o home office na pandemia, e parcela substancial deve continuar adotando o modelo de trabalho remoto à medida que as operações forem normalizadas. “São mudanças feitas quase à força, mas que vieram para ficar”, diz Tokarski, do Instituto FSB. Nada que as empresas brasileiras conquistaram na pandemia poderá compensar a perda em vidas e o impacto econômico que destruiu riqueza em todo o país, mas o pior parece ter ficado para trás.


Fonte: Exame  


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