Neste marketplace, tudo é feito por celular. Se o produtor não souber ler e escrever, recebe mensagem de áudio
Quando Priscilla Veras, hoje aos 40 anos de idade e CEO da startup Muda Meu Mundo (MMM), marketplace que conecta pequenos produtores de frutas, verduras e legumes às grandes redes de supermercado e startups de entrega em domicílio, decidiu cursar pedagogia, ela teve de enfrentar a resistência doméstica. Natural de Fortaleza (CE), de uma família onde quase todos eram médicos ou advogados, a carreira de pedagoga não era vista como uma profissão. “Meu avô ficou sem falar comigo”, lembra.
No entanto, Priscilla insistiu na escolha. Cursou também ciências políticas e acabou indo trabalhar em organizações não-governamentais (ONGs). “Entendi que a educação era algo muito importante para atuar na redução da pobreza”, diz.
Pela ONG americana Compassion Internacional de ajuda humanitária, com sede no Colorado (EUA), viajou muito pelo Brasil e países da América Latina. Conheceu comunidades pobres de cidades do interior e se deparou como uma contradição: como um agricultor familiar que gera tanta riqueza produzindo alimentos pode viver numa situação de extrema pobreza?
Certa vez participando de uma conferência nos Estados Unidos escutou de um líder comunitário africano que o seu povo não queria doações, mas que comprassem o seu café. Com a economia girando, as pessoas têm condições de se manter e sair da pobreza, afirmou o líder.
Pobreza extrema
Na mesma conferência estava presente o economista Muhammad Yunus, de Bangladesh, criador do conceito de microcrédito. No encontro, reafirmou a percepção de Priscila de que era preciso fazer as pessoas saírem da pobreza extrema pelo próprio trabalho.
Paralelamente, em suas andanças pelo Brasil e pelo mundo, constatou que a origem do problema enfrentado pelos pequenos agricultores era a mesma. Entre o campo e o supermercado, há uma cadeia longa de escoamento da comida, marcada por muitos intermediários. O produto demora mais de 48 horas para chegar ao supermercado e o desperdício é elevado, na casa de 30%.
“No Brasil há 3 milhões de agricultores familiares que não conseguem sair da pobreza porque a forma que comercializam os produtos muitas vezes não dá para pagar o custo de produção”, afirma. Esse agricultor não sabe calcular o preço do seu produto e se sujeita a receber quanto o comprador quer pagar.
Diante desse diagnóstico, Priscilla decidiu criar ferramentas que promovessem uma remuneração mais justa ao pequeno agricultor. “Vi que havia um problema grande e, na solução, um novo filão de negócio.”
O começo
O primeiro passo foi convencer o seu chefe na ONG a demiti-la. Com a indenização e o dinheiro da venda de um carro, que somavam em 2017 cerca de R$ 150 mil, começou organizar feirinhas em Fortaleza (CE). Uma vez na semana, o produtor poderia vender frutas verduras e legumes direto ao consumidor.
Mas esse modelo de comercialização não foi para frente. Como o agricultor colhe diariamente, ele precisa ter recorrência nas vendas e também volume. O escoamento de grandes quantidades é garantido pela compra de grandes supermercados. O ponto crucial, segundo Priscilla, era simplificar a cadeia de comercialização e abrir caminho para a venda quase direta com supermercados.
A solução veio com a criação de um marketplace, uma espécie de shopping virtual. Nele, o pequeno produtor consegue iniciar uma negociação estabelecendo preço mínimo e volumes.
A plataforma não apenas promove o encontro de quem quer comprar com quem quer vender. Uma equipe de 20 pessoas, formada por profissionais de tecnologia e vendas, também há agrônomos que dão assistência técnica para que a produção atenda o padrão exigido pelo comprador. Além disso, é dada aos produtores orientação sobre planejamento financeiro, emissão de notas fiscais, adiantamento de recebíveis. “Estamos entrando agora com o microcrédito”, conta a empresária que foi eleita pela Forbes como uma das 20 mulheres mais inovadoras em AgTechs (startups de tecnologia do agronegócio) do País.
O projeto, que começou em Fortaleza em 2020, estreou na cidade de São Paulo no ano passado. Hoje são quase 500 produtores, localizados num raio de até 250 quilômetros dessas cidades, que entregam 27 toneladas de alimentos por mês. O marketplace, que é um “intermediário tecnológico”, segundo Priscilla, fatura um porcentual sobre o que é vendido.
Ela diz que o ganho de renda para o produtor tem sido significativo. Com seis meses no marketplace, agricultores já conseguiram dobrar a renda. E o desperdício de produtos foi reduzido para 1,5%.
A plataforma também traduz para os agricultores as exigências técnicas dos supermercados de forma simples, inclusive como o produto deve ser embalado. “Tudo é feito via celular e, se o produtor não souber ler e escrever, ele recebe uma mensagem de áudio”, diz ela.
São fornecidas etiquetas com QR-Code, onde é possível saber sobre a rastreabilidade do produto. Isto é, quem é o agricultor, onde foi plantado e se atende aos quesitos ESG, de governança, sustentabilidade e respeito ao meio ambiente, na sigla em inglês.
O marketplace é responsável pelo transporte terceirizado do item, que chega o supermercado em até 12 horas depois de colhido. O projeto começou com orgânicos e neste ano entraram produtos convencionais, que representam 60% das vendas na capital paulista.
Planos
Hoje se abastecem no marketplace redes como Carrefour, GPA, Natural da Terra, St. Marché, Mercadinho São Luiz, Supermercado Pinheiro, além das startups Frubana, Jüsto e Liv Up. Neste mês, está prevista a entrada das redes Dia e Mambo.
A meta é até o final deste ano é cobrir todo o Estado de São Paulo e na metade do ano que vem expandir para Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná. Priscilla diz que já está contactando produtores nessas regiões para suportar a expansão.
A primeira captação da plataforma foi de R$ 900 mil. Faz um mês que a startup voltou ao mercado e amealhou mais R$ 4 milhões. Os recursos serão injetados em tecnologia e expansão da operação. Em julho, a plataforma faturou um pouco mais de R$ 400 mil. A meta é chegar a R$ 1,5 milhão mensais até o fim do ano. “Estamos atingindo o ponto de equilíbrio”, diz Priscilla. Ela projeta vendas mensais de R$ 6 milhões coma entrada em outras praças. Em três anos quer ter 1.300 supermercados se abastecendo no marketplace, hoje são 40 lojas.
Fonte: Márcia De Chiara, Estadão