A possibilidade de restringir a publicação de informações contidas em ações trabalhistas e criminais na internet opõe dois princípios constitucionais antagônicos: o direito à proteção de dados pessoais, instituída no artigo 5º, inciso LXXIX, da Constituição desde a Emenda Constitucional 115/2022; e o princípio da publicidade dos atos da administração pública, inscrito no artigo 37, parágrafo 1º.
A visão de que a divulgação ampla de informações contidas em ações trabalhistas e criminais na internet, a partir de consulta pelo nome da parte, fere o direito fundamental à proteção de dados foi defendida pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, em parecer enviado ao Supremo Tribunal Federal.
O tema será abordado pelo STF em sede de repercussão geral (ou seja, com efeito para todos os tribunais do país) no bojo de um Recurso Extraordinário com Agravo em que o site Escavador pede que a Corte fixe uma tese jurídica nacional, com base em decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul favorável ao portal. A manifestação do MPF foi enviada no último dia 3 de agosto.
O TJ-RS negou pedido de indenização feito por um homem que teve informações sobre uma reclamação trabalhista ajuizada por ele divulgada pelo Google e pelo Escavador a partir dos seus dados pessoais A Corte gaúcha entendeu que a divulgação de processos que não estejam em segredo de Justiça por sites de conteúdos judiciais é lícita. Uma curiosidade é que essa é a primeira vez que a parte vencedora no juízo de origem recorre ao Supremo para que uma tese seja fixada em âmbito nacional.
O conflito entre o princípio da publicidade e o segredo de Justiça não é novo, mas a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709) trouxe uma camada nova de complexidade ao tema. Esse é o diagnóstico advogado e consultor especializado em Direito e novas tecnologias, Omar Kaminski.
Se o Supremo acolher os argumentos da PGR, afirma ele, a vitória da defesa da privacidade vai limitar as consultas nominais ou de vinculações públicas de processos judiciais a determinadas pessoas.
Segundo Kaminski, na prática, o limitador seguiria sendo o segredo de Justiça. A execução de uma eventual decisão favorável continuaria sendo conflituosa, porque exigiria uma mudança de mentalidade e isso leva tempo. "Especialmente em se tratando do Judiciário, que mesmo em processos em segredo de justiça ainda costuma colocar o nome completo das partes no relatório ou no dispositivo, anulando qualquer tentativa de proteção por buscadores", explica.
A advogada e presidente da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da seccional do Rio de Janeiro da OAB, Estela Aranha, por sua vez, entende que a o acolhimento integral dos argumentos do MPF teria um impacto muito grande em toda a cultura de transparência processual, o que contraria o dispositivo constitucional da publicidade dos atos da administração pública — já que a restrição ao direito à informação é exceção no nosso sistema.
"Ao mesmo tempo, é importante a ponderação que o próprio dispositivo constitucional traz entre a ampla publicidade e a defesa da intimidade e valores sociais. No caso, a proteção de dados também é de interesse público, de toda a sociedade. Por isso, é importante que essa publicidade não traga riscos de discriminação", explica.
A especialista sustenta que, ao mesmo tempo que esses mecanismos de busca são importantes para a própria administração da Justiça, deve-se ter maior controle de proteção de dados. "A LGPD tem um instrumento importante que é o relatório de impacto à proteção de dados onde essa ponderação de proporcionalidade pode ser feita e apontadas as medidas de mitigação dos riscos que possam afetar as liberdades civis e direitos fundamentais dos titulares de dados pessoais", defende.
Matheus Puppe, sócio da área de TMT, Privacidade & Proteção de Dados do Maneira Advogados e membro do GT de Compliance do CNJ e do Comitê de Integridade do Poder Judiciário, defende que cada caso deve ser analisado de forma isolada.
"A situação deve ser analisada não de forma abstrata e geral, porém pontual a cada tipo de ferramenta, como por exemplo, as que permitem uma busca limitada e individualizada, pautada no legitimo interesse para possibilitar o cumprimento de obrigação legal ou regulatória, tais como o exercício da advocacia. Mas concordo que o uso indiscriminado deve ser coibido", diz.
Antonielle Freitas, DPO (Data Protection Officer) do escritório Viseu Advogados e membro da Associação Nacional dos Profissionais de Privacidade de Dados (ANPPD), vê nesse debate uma "briga de gigantes", opondo dois princípios protegidos pela Constituição.
"Julgo que, havendo dados sensíveis, privados e íntimos de uma pessoa, mesmo que não exista a decretação de segredo de Justiça, a regra que diz respeito à publicidade deve ser mitigada em prol da proteção autônoma e fundamental dos dados da parte, devendo ser assegurado o sigilo dos dados pessoais sensíveis, ainda que o ato processual seja público", opina.
Compliance judiciário
Kaminski explica que o julgamento pelo STF pode demonstrar a necessidade de regras mais rígidas de compliance por parte do Judiciário que é a fonte primária das informações e dos veículos de mídia como disseminadores de notícias de interesse público. Ele lembra que a publicização dos atos processuais deve seguir sendo a regra.
"Com a palavra a Agência Nacional de Proteção de Dados, que após dois anos de vigência da LGPD ainda se limita a atividades informativas, e não punitivas", provoca.
No parecer enviado ao STF, Aras cita a Resolução 121/2010 do Conselho Nacional de Justiça e a Resolução 139/2014 do Conselho Superior da Justiça. Ambas impedem o uso de recursos tecnológicos para consulta ampla e irrestrita desses tipos de processos com base no nome ou em outros dados pessoais das pessoas envolvidas na ação. O objetivo é evitar a formação de "listas sujas" de trabalhadores que processaram empregadores ou qualquer outra forma de discriminação.
Apesar das recomendações, dependendo da singularidade do nome ou sobrenome da parte é possível encontrar processos apenas com esses dados vários tribunais de Justiça e também no STF. Isso ocorre, segundo Kaminski, porque normas como essas exigem investimentos e uma melhor cultura tecnológica.
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ARE 1.307.386
Rafa Santos – Repórter da revista Consultor Jurídico.
Fonte: Revista Consultor Jurídico – 10/08/2022