Um levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro identificou que uma em cada quatro ocorrências por furto de alimentos, bebidas ou itens de higiene pessoal no estado envolveu valores de até 10% do salário mínimo. Os pesquisadores analisaram 943 ocorrências do tipo registradas em 2020 e no primeiro semestre de 2021. Desse total, 241 (25,6%) casos foram de produtos com valores inferiores a 10% do salário mínimo.
De acordo com a pesquisa, a maior parte desses casos (83,8%) resultaram em liberdade provisória determinada em audiência de custódia. Mas, quando julgados, levaram à condenação de 32% das pessoas acusadas, com penas que chegaram a três anos e meio. O princípio da insignificância foi reconhecido em apenas 55% das sentenças, apesar de teoricamente os casos corresponderem aos parâmetros estabelecidos pela jurisprudência para a sua aplicação.
Os números fazem parte do "Relatório sobre aplicação do princípio da insignificância no caso de furto de itens alimentícios e de higiene no Rio de Janeiro". A Defensoria Pública do estado analisou, no total, 4.175 registros de ocorrência policial e de processos judiciais de furtos. Eles foram classificados de acordo com o tipo de objeto e o preço a ele atribuído, tendo por base o salário mínimo da época.
A maior incidência de casos reunidos foi de furto de metal (fios de cobre, tampas de bueiro, grades, etc): 1.073 prisões. Os furtos de alimentos, bebidas e artigos de higiene vêm em seguida. Os dados têm como fonte as audiências de custódia e os processos judiciais abertos no período nos quais atuaram defensoras e defensores públicos.
"Da análise dos casos de furto que chegaram ao sistema de justiça foi possível perceber que a realidade é muito mais complexa do que o arcabouço jurídico pode prever e tentar normatizar. Muitas das ocorrências ultrapassam o valor previsto na jurisprudência para aplicação do princípio da insignificância, porém não afastam o caráter de subsistência que as envolve. É o caso, por exemplo, de furto de grandes quantidades, como caixas de chocolate, que possivelmente seriam vendidas e o valor auferido utilizado para suprir necessidades básicas", destaca a diretora de Estudos e Pesquisa da Defensoria, Carolina Haber.
Ela ressalta, ainda, que uma das grandes dificuldades do levantamento foi definir o que poderia ser considerado um item utilizado para suprir necessidades básicas de uma pessoa em situação de vulnerabilidade. "O caminho escolhido foi associar a aplicação do princípio da insignificância ao furto denominado famélico, porém foram encontrados vários casos de outros itens, como, por exemplo, botijão de gás ou itens de vestuário, como chinelos, que poderiam se enquadrar nesse perfil, ainda que indiretamente. Sem falar no caso do furto de cabos de energia e de internet, de materiais como o cobre, que acabam sendo revendidos em ferros velhos por valores irrisórios, que também serão revertidos em itens de sobrevivência."
Reincidência e vulnerabilidade
Coordenadora de Defesa Criminal, Lucia Helena Oliveira diz que o princípio da insignificância tem sido reconhecido com maior frequência: "É necessário que haja expressividade na lesão ao bem jurídico protegido. No entanto, em termos práticos, ainda encontramos muitas dificuldades para que haja o reconhecimento do princípio da insignificância, ainda que estejamos diante de produtos de necessidade básica. Precisamos que haja uma mudança legislativa para que este princípio possa estar expressamente previsto em nossa lei penal, evitando, deste modo, a insegurança jurídica, em razão de decisões jurídicas diferenciadas. Em verdade, a previsão legal também evitaria que as questões relativas a este princípio fossem levadas até as Cortes Superiores, contribuindo com a diminuição do volume excessivo de processos em tramitação."
A legislação, lembra a Defensoria, não prevê expressamente o tratamento a ser dado a furto de itens para necessidades pessoais, mas a Justiça costuma considerar, para aplicação do princípio da insignificância, a mínima ofensividade; nenhuma periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica provocada. No Código Penal há previsão de furto privilegiado, que consiste na possibilidade de diminuição da pena, de um a dois terços, quando a pessoa que cometeu o crime for primária e a coisa furtada, de pequeno valor.
Ou, como observa o relatório: "Na análise dos casos que foram classificados como alimentos/bebidas/itens de higiene no valor de até 20% do salário mínimo é possível notar que o maior empecilho para o reconhecimento do princípio da insignificância é a reincidência ou, até mesmo, anotações anteriores na folha de antecedentes, ainda que não tornem o/a acusado/a reincidente. Contraditoriamente, as pessoas que estão em situação de vulnerabilidade são as que mais tem chance de cometer furtos de forma reiterada, uma vez que as necessidades são diárias e provavelmente aparecem com frequência".
No tocante aos registros em que os valores envolvidos eram de até 10% do salário mínimo, a maioria das decisões judiciais (55%) “reconheceu e aplicou o princípio da insignificância (65 de 118). Em 67,8% dos casos (80 de 118), a decisão beneficia de alguma forma o/a acusado/a, verificando-se que, nas situações em houve condenação, o maior impedimento para o reconhecimento da insignificância foi o fato do/a acusado/a ter anotações criminais ou ser reincidente.
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Fonte: Revista Consultor Jurídico – 13/06/2023