Quando assumir o Ministério da Justiça, em 1º de janeiro, José Eduardo Martins Cardozo tomará decisões que vão interferir diretamente no cotidiano das empresas. Sob a sua gestão, os órgãos antitruste do governo passarão por uma revolução. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) será reforçado e será criada a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, com mais status do que o atual departamento que cuida dessa área e mais poder para atuar contra abusos cometidos por grandes companhias. Essa mudanças devem ser implementadas em seis meses, previu Cardozo em entrevista ao Valor. As operações da Polícia Federal no combate a cartéis também vão ser intensificadas, disse.
O novo ministro defendeu maior participação do governo e do Congresso nas indicações para o Supremo Tribunal Federal (STF). Esse é outro assunto em que ele vai atuar no curto prazo, pois a presidente eleita Dilma Rousseff deverá indicar um ministro para o STF logo nos seus primeiros dias de seu mandato. Cardozo pretende ser um interlocutor importante nessa escolha.
O ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff avalia que a corrupção está impregnada no Estado brasileiro. Ele vê avanços nas ações da PF que levaram a prisões de governadores, prefeitos e empresários, mas acredita que ainda existe a mentalidade de o ocupante de cargos públicos achar que deve faturar algo com isso. Para ele, essa é uma cultura que precisa mudar, pois a corrupção afeta diretamente a criminalidade. Cardozo acha que o dinheiro da corrupção vai direto para o crime organizado.
A seguir os principais trechos da entrevista ao Valor:
Valor: Qual será o foco de ação do Ministério da Justiça no governo Dilma?
José Eduardo Martins Cardozo: O eixo central será a segurança pública e o combate ao crime organizado, até por ser uma das diretrizes de governo definidas pela presidente Dilma Rousseff. Mas, o direito econômico e outras áreas sempre tiveram importância. Hoje, temos a Secretaria de Direito Econômico (SDE) e o Cade. A partir do ano que vem, o Cade terá mais poderes e novas atribuições. Isso vai obrigar a uma reformulação da SDE. A tendência é que a secretaria passe a cuidar exclusivamente dos interesses do consumidor.
Valor: Como será implementada essa mudança?
Cardozo: Hoje, as unidades de defesa do consumidor já têm uma atuação importante, mas elas vão crescer em dimensão. Ainda não temos uma definição da reconfiguração técnica da nova secretaria, mas ela vai ter mais estrutura para atuar. Acho que teremos uma definição no prazo de seis meses.
Valor: O que vai mudar no Cade?
Cardozo: Haverá uma atuação mais forte englobando competências que hoje cabem ao Ministério da Fazenda e à SDE. Acredito que o Cade vai ser fortalecido e exercer as suas competências com maior eficiência.
"Uma boa investigação não se coaduna com o espetáculo. Ela exige sigilo, discrição e eficiência"
Valor: Durante o governo Lula, houve muitas operações de combate a cartéis com o auxílio da Polícia Federal. Elas vão continuar a partir de janeiro?
Cardozo: Os três ministros que passaram pela Justiça [Márcio Thomas Bastos, Tarso Genro e Luiz Paulo Barreto] tiveram a mesma linha de atuação para fortalecer a PF. Não há porque mudar. Vamos continuar agindo da mesma forma. Essas operações do governo Lula continuam e vão ser intensificadas.
Valor: A PF sofreu duras críticas por causa da exposição de pessoas presas à mídia, durante as operações. Qual será a orientação nesses casos?
Cardozo: Eu diria que a espetacularização das atividades policiais deve ser duramente repelida. Uma boa investigação não se coaduna com o espetáculo. Ela exige sigilo, discrição e eficiência na busca de provas. A espetacularização fere direitos individuais, leva a pré-julgamentos e a linchamentos.
Valor: A OAB reclama muito que os direitos dos acusados estão sendo feridos por essas ações da PF. Como o senhor pretende conduzir a sua relação com a OAB?
Cardozo: Não existe democracia sem advogados que possam atuar na defesa dos direitos daqueles que são acusados. A relação precisa ser harmoniosa. Quando surgirem tensões, elas devem ser resolvidas com diálogo, abertura e transparência.
Valor: Uma das queixas da OAB é a de que as conversas dos presos com os advogados não deveriam ser monitoradas.
Cardozo: Direitos devem ser preservados e garantidos, mas temos de encontrar a melhor forma de combater o crime organizado. Não podemos ser ingênuos e municiadores de ações criminosas na sociedade. Esse diálogo só se consegue com respeito mútuo entre os órgãos públicos e as entidades.
Valor: A Ordem também é contra a realização de depoimentos por teleconferência.
Cardozo: Muitos acham que isso impede o juiz de ter a percepção efetiva do que aconteceu. Mas, eu, pessoalmente, sou favorável. Eu acho que a tecnologia não pode ser desprezada. Ela facilita as ações judiciais.
Valor: Sempre que surge algum grande caso de violência, há mobilização no Congresso, que acaba aprovando leis imediatas contra o crime. Como o senhor vê a política legislativa para a segurança pública?
Cardozo: Não podemos encarar a segurança pública de maneira reativa, fazendo mudanças de afogadilho para dar uma resposta à opinião pública. É preciso um pacto verdadeiro que leve ao fim da violência, em três níveis: União, Estados e municípios. Nem sempre essa relação é dissecada pelos estudiosos, pois há muitos conflitos sobre quem pode e quem deve fazer o quê. Segurança pública envolve ações preventivas e repressivas, envolve medidas legislativas, judiciais e executivas. Não podemos entender a segurança pública no sentido estrito, mas no amplo.
Valor: Como superar esses conflitos entre o governo federal e os estados na área de segurança?
Cardozo: É necessária uma articulação com Estados e municípios. Cada ente da federação tem um papel a cumprir. Há situações que só podem ser conduzidas pela União, como a fiscalização das fronteiras. Outras só pelos Estados, como o policiamento local. Se não integrarmos a atuação, dificilmente teremos um salto nessa questão.
Valor: O senhor acha que o combate à criminalidade está muito politizado?
Cardozo: A criação de super heróis pode ser um obstáculo para a formação de um pacto nessa área. Seria dizer eu sou o ministro da Justiça, o homem que pode resolver o assunto. Ora, não é por aí. Uma segunda questão é superar as divergências político-partidárias. Temos Estados governados por integrantes de diversos partidos. Se pensarmos que as questões não podem ser resolvidas para não gerar dividendos eleitorais, nunca teremos um pacto verdadeiro. É hora de buscarmos mais convergências e menos disputas políticas. Esse pacto vai ser buscado sem alardes, sem a busca de manchetes. O crime exige uma polícia constante, uma estratégia que deve ser articulada, mas não para atender a opinião pública.
Valor: Mais de 70 órgãos públicos, reunidos na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), pediram ao Congresso a aprovação de uma nova lei de combate à lavagem de dinheiro e outra que tipifica as organizações criminosas, mas elas simplesmente não são votadas.
Cardozo: O aperfeiçoamento legislativo do país é de vital importância. Além dessas leis, precisamos aprovar um novo Código de Processo Penal para agilizar procedimentos judiciais, sem prejuízo ao direito de defesa. Temos também a Lei Orgânica da PF, a modificação de leis que dificultam a aplicação de sanções a policias que participam de crimes. Tudo isso exige uma ação integrada. A nossa ideia é criar propostas comuns para serem debatidas pelo Parlamento.
Valor: E com relação ao Judiciário? O senhor vai assumir a pasta da Justiça com ministros do STF se sentindo desprestigiados pelo Executivo, pois eles esperam, desde agosto, pela indicação de um novo ministro. Além disso, como o STF se dividiu na extradição do italiano Cesare Battisti, qualquer que seja a decisão do presidente Lula, ela vai gerar descontentamentos na Corte.
Cardozo: Eu ainda não sou o ministro. O ministro é o Luiz Paulo Barreto e ele vai exercer a sua função. O presidente da República pode a qualquer momento indicar um integrante para o STF e decidir sobre Battisti. Eu já me pronunciei sobre o caso na tribuna da Câmara dos Deputados, mas, neste momento qualquer comentário seria indelicado.
"Para evitar o abuso de poder, é necessário dividir o poder. Só o poder limita o poder"
Valor: É comum o Ministério da Justiça indicar nomes de ministros para o Supremo Tribunal Federal. Como o senhor pretende agir nessas indicações?
Cardozo: Acho absolutamente natural que o Ministério da Justiça manifeste sua opinião à presidente Dilma. Mas, claro que a nomeação caberá a ela. Agora, eu não creio que a relação com o STF se resuma a isso. O STF é a principal Corte do país e o Executivo deve tratar o STF numa relação de compreensão e parceria. A orientação do ministério será a de caminhar em estreita parceria não só com o STF, mas também com o STJ e com toda a magistratura federal.
Valor: O modelo de indicação de ministros para o STF deve ser revisto? Só o presidente Lula fez oito indicações e, hoje, tem seis nomes entre os 10 ministros.
Cardozo: Esse modelo está previsto na Constituição Federal. Eu acho que não precisa mudar. O fundamental é que o Executivo e o Legislativo sejam cada vez mais criteriosos na escolha dos nomes que vão integrar as cortes superiores. Eles têm o dever de avaliar os nomes. Esse cuidado é fundamental e deve ser muito bem exercido.
Valor: Como o senhor vai conduzir os momentos de tensão e de discordância entre o governo e o STF?
Cardozo: Eu diria que é absolutamente normal que tenhamos momentos de tensão entre o Executivo e o Judiciário, entre o Judiciário e o Legislativo. Montesquieu sugeriu a divisão dos Poderes justamente por achar que todo homem que detém o poder dele vai abusar. Para evitar o abuso de poder, é necessário dividir o poder. Só o poder limita o poder. Agora, essa situação gera tensões adicionais. A tensão é natural. O principal é saber equacioná-la. Eu acho que debates prévios podem levar a percursos inúteis. O papel dos magistrados é o de, ao surgirem tensões, ter a grandiosidade de saber equacioná-las.
Valor: Combater a corrupção no Poder Público é mais difícil do que combater os traficantes dos morros do Rio?
Cardozo: O crime organizado é sempre difícil de ser combatido. Não existe crime organizado sem aparelhamento do Estado, sem a conivência de autoridades. E quanto maior essa conivência, mais difícil o combate ao crime. A corrupção tem uma relação intrínseca com o combate ao crime organizado. Ele pressupõe o aprimoramento contínuo do aparato do Estado.
Valor: Concorda com a avaliação de que o governo Lula não conseguiu combater a cultura da corrupção na máquina pública?
Cardozo: O governo Lula não conseguiu algo que talvez seja de fato impossível de conseguir. Imaginar que o governo Lula mudaria uma tendência histórica é querer que tenha poderes mágicos. Mas, ele teve um papel importantíssimo. Nunca tivemos um enfrentamento tão forte nessa questão. Tivemos governadores, prefeitos, empresários presos. Nós não tivemos procuradores-gerais que arquivavam processos, não tivemos no governo Lula engavetadores gerais da Republica. Isso colocou luz no problema.
Valor: Por que o senhor disse que é impossível extinguir completamente a cultura da corrupção na máquina pública?
Cardozo: A cultura não republicana de apropriação privada do que é público vem do Brasil Colônia. Não podemos ser ingênuos. Às vezes, é mais fácil derrubar um governante do que mudar uma cultura.
Valor: É uma cultura generalizada?
Cardozo: Ela é histórica. No Brasil, nas mais diversas funções, há a apropriação privada dos bens públicos. Síndicos de prédios desviam dinheiro dos condôminos, funcionários de companhias privadas lesam os patrões para não serem considerados idiotas. Quando acabou o mandato da prefeita Luiza Erundina, na prefeitura de São Paulo, eu fui secretário de governo e um amigo perguntou o que eu faria. Eu disse que daria aula e ele perguntou: "Por quê? Você precisa manter as aparências?" Questionei se ele achava que eu era ladrão. E ouvi a seguinte resposta: "Se não for, é porque foi um idiota". Infelizmente, o "rouba, mas faz" é da base da nossa cultura. E não se modifica cultura por decreto.
Valor: Para o senhor, o combate à corrupção está ligado à violência e à criminalidade. Por que a sociedade não liga uma coisa à outra?
Cardozo: A pessoa que paga uma propina para um policial não multá-la não percebe que está alimentando um sistema de corrupção que favorece o crime organizado. A sociedade não percebe que, ao aumentar a roda viva da corrupção com propinas, está colocando em risco a própria vida e dos familiares. A corrupção gera violência.
Valor: O senhor já está formando sua equipe? Vai trazer mais gente da PUC-SP ou da USP?
Cardozo: Convidei o atual ministro, Luiz Paulo Barreto, para ser meu secretário-executivo e ele aceitou. Para os outros cargos, ainda estou pesquisando e analisando, inclusive para a direção da Polícia Federal. Meu critério vai ser o de buscar pessoas com boa capacitação e competência técnica. Se for da USP, da PUC, de outros Estados, isso não importa muito.
Veículo: Valor Econômico