O mais novo código brasileiro, que trata da defesa do consumidor, vai passar por uma reforma para abranger um tema que preocupa as famílias brasileiras: o superendividamento - total de contas acima da capacidade de pagamento. Hoje, de acordo com pesquisa divulgada recentemente pela Confederação Nacional do Comércio (CNC), 59,4% de um total de 17,8 mil famílias entrevistadas estão endividadas. Desse percentual, 22% estão com contas em atraso e 7,9% alegam que não terão como quitar suas dívidas. Um anteprojeto com previsões legais sobre o assunto deve estar pronto em seis meses. O texto também deve regulamentar melhor outros temas, como o comércio eletrônico e o papel dos Procons como meio alternativo de resolução de conflitos.
Ainda que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) seja considerado de vanguarda pela comunidade jurídica e estar apenas 20 anos em vigor, o ingresso de 50 milhões de consumidores no mercado de crédito desde a década de 90 impõe a revisão da lei, segundo a justificativa do presidente da comissão, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Herman Benjamin. Ele participou da comissão que elaborou o CDC atual, em 1989, quando atuava como promotor de justiça. No entanto, nessa época, segundo o ministro, a inflação e o sistema bancário impediam essa discussão sobre o mercado de crédito.
O novo projeto, de acordo com Benjamin, não deve tratar da regulação dos serviços financeiros em si, mas de transparência, informação e o direito de arrependimento no mercado de crédito, a exemplo do que já é feito em outros países. Além da diretiva europeia editada em 2008, França, Suécia, Alemanha, Dinamarca, Finlândia, Estados Unidos, Bélgica e Áustria possuem normas de proteção ao consumidor contra o superendividamento.
Apesar de o foco principal ser o superendividamento, o novo código também deve regulamentar melhor o comércio eletrônico, agora utilizado em larga escala pelos consumidores brasileiros. O texto ainda deve investir no fortalecimento dos Procons, para diminuir os litígios judiciais. No STJ, estima-se que de 20% a 30% dos recursos da 2ª Seção - responsável pelo julgamento de temas de direito privado - tratem de relações de consumo.
A comissão, que teve sua primeira reunião em dezembro, também é composta pela jurista Ada Pellegrini Grinover, copresidente da comissão responsável pelo anteprojeto; a professora Claudia Lima Marques, responsável pela redação do CDC-Modelo das Américas; o promotor do Distrito Federal e especialista em serviços financeiros, Leonardo Bessa e Roberto Pfeiffer, ex-diretor do Procon-SP.
O grupo pretende ouvir setores específicos da sociedade, como as instituições financeiras, a Defensoria Pública, o Ministério Público, os Procons e o Poder Judiciário. Depois de um primeiro esboço, a comissão deve organizar audiências públicas nas principais cidades do país para ouvir a população. Só então, o anteprojeto será apresentado ao Senado.
Os temas que serão incluídos no anteprojeto foram, em geral, bem recebidos pelos advogados. Segundo Marcelo Roitman, sócio do Pompeu, Longo, Kignel & Cipullo Advogados, a regulamentação que tratará do superendividamento vem em boa hora. "Essa superoferta de crédito só começou a ocorrer há alguns anos e agora é preciso haver regras mais claras para o consumidor de boa-fé, que não conseguiu, por algum motivo, honrar suas dívidas", diz. Para ele, contratempos como o desemprego, doença ou separação podem fazer com que o consumidor tenha sua renda reduzida de uma hora para outra. "O que se deve discutir é como resolver o problema da inadimplência para que o consumidor volte ao mercado."
Até agora, os casos de superendividamento tem que ser tratados individualmente na Justiça, que se baseia em princípios como a função social do contrato e a boa-fé para reduzir multas, juros e alongar os prazos de pagamento. "O ideal é que existam regras gerais para propor um mecanismo parecido com o da recuperação judicial de empresas", afirma Roitman. Com relação ao comércio eletrônico, o advogado diz acreditar que as normas já existentes são suficientes.
Já o fortalecimento dos Procons, de acordo com a advogada Juliana Christovam João, do Rayes, Fagundes e Oliveira Ramos Advogados, pode ser uma boa maneira de desafogar o Judiciário. O advogado Antonio Carlos de Oliveira Freitas, sócio do Luchesi Advogados, entende, no entanto, que não há necessidade de se elaborar um novo código para fazer atualizações pontuais.
Veículo: Valor Econômico