O STF tomou uma decisão unânime no último dia 24 que produzirá efeitos muito relevantes para o federalismo fiscal e mesmo para a economia, sem contar a inovação em torno dos pedidos de inconstitucionalidade. Espantosamente, a maioria das autoridades, analistas e mídia não atentaram para tal fato.
A decisão envolve a forma como hoje é distribuído o Fundo de Participação dos Estados (FPE) entre as 27 unidades federadas. Em poucas e simples palavras, aquela Corte decidiu que, no máximo, até o final de 2012, poderá continuar sendo adotada uma tabela (anexa à Lei Complementar nº 62 de 1989) que “congelou” o seu rateio em 27 cotas.
A citada lei previa que tais coeficientes fixos seriam aplicados em caráter provisório, apenas até 1991. Porém, o Congresso nunca votou a matéria e, passados mais de 20 anos, o STF decidiu que tal situação só poderá prosseguir até o ano de 2012 (também reconheceu que a suspensão imediata deixaria os Estados sem receber o FPE e com danos graves às finanças).
Na prática, mais do que julgou inconstitucional uma parte da lei, condenou a omissão do legislador em deixar de regulamentar um comando fundamental para a Federação.
A Constituição determina que o FPE (como o FPM) sejam repartidos entre os Estados (e entre os Municípios) segundo “critérios de rateio... objetivando promover o equilíbrio sócio-econômico”, fixados em lei complementar. Nem é preciso recorrer a análises jurídicas ou fiscais, basta a gramática para saber que uma tabela, com porcentagens fixas, que nunca muda, não se trata de um critério de rateio. Se esse havia, era político, na essência.
Basta recorrer aos anais parlamentares para ler na justificativa da proposição e nos pronunciamentos da votação do correspondente projeto de lei que tal tabela foi acordada no CONFAZ. Foram arbitrados, dentre outros aspectos, que 85% do Fundo caberiam aos estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, enquanto 15% ao Sul e Sudeste, e que a cota-parte de São Paulo seria reduzida para 1% para elevação da cota de alguns dos outros, relativamente ao que era aplicado até então.
As razões para tal arbitragem remontam à Assembleia Constituinte: quando instalada, o FPE recebia 14% da arrecadação do
IR mais IPI; no início, subcomissão elevou essa fatia para 18,5% mas limitou o rateio apenas para as unidades com renda per capita inferior à média nacional; depois, a comissão temática aumentou de novo a repartição para 21,5% e eliminou qualquer restrição no rateio; e assim ficou até a Carta promulgada.
Portanto, a disputa regional determinou uma maior descentralização de recursos (depois atenuada pela política federal de explorar cada vez mais contribuições não compartilhadas) e balizou a cota que caberia àquelas 3 regiões (arredondando 18,5 por 21,5).
Retrocedendo um pouco mais, menciona-se que o FPE foi criado em meados dos anos 60 com verdadeiros critérios de rateio. Era redividido segundo 3 parâmetros: superfície (5%), população (47,5%) e inverso da renda por habitante (47,5% do total).
Algum redirecionamento já aparecia na concepção fundo para beneficiar as unidades menos populosas e menos desenvolvidas (por acaso, dos governos mais fiéis à ditadura militar): por exemplo, nenhum estado contaria como tendo menos de 2% da população nacional (beneficiaria 15 estados hoje) e nenhum poderia ter mais que 10% (penalizaria os 2 maiores). Nos anos 70, foi criada uma reserva para ratear 20% do FPE apenas entre os do Norte e Nordeste.
Mas esse passado serve apenas para ilustrar como já tivemos critérios de rateio, mas eles foram revogados em 1989 e não voltarão a ser aplicados depois da decisão do STF.
Estátua! Como uma brincadeira de criança, o FPE passou mais de duas décadas ignorando que as economias das diferentes regiões, estados e localidades evoluíram de forma muito diferenciada, como é natural. Por exemplo, segundo o IBGE, em 1985, só 2 regiões (Sudeste e SUL) e 6 estados (SP, RJ, DF, RS, AM e SC) tinham PIB per capita acima do nacional; isso mudou em 2007, incluindo o Centro-Oeste e mudando o conjunto de estados (caiu AM e subiu MT, PR e ES, sem contar que saltou para a liderança o DF, com 2,8 vezes a média brasileira, superou SP, com 1,56 vezes).
Expansão da fronteira agrícola e dos serviços, desconcentração da indústria, várias mudanças ocorreram na economia e na sociedade e são ignorados pelo mecanismo que deveria fechar a equação fiscal, de forma a redistribuir recursos para os governos que podem arrecadar menos que os demais.
Novos critérios para o FPE também devem ponderar o potencial e a efetiva arrecadação direta e as necessidades de cada ente. Logo, no início dos mandatos, os futuros Governadores precisarão negociar muito entre si e pressionar o Congresso para aprovar uma nova lei e, se ponderados critérios técnicos, inevitavelmente caberá repensar junto o ICMS.
Naquilo que todos sempre temeram tocar, o STF foi muito corajoso e ao puxar o FPE para o centro do debate político, também pode trazer junto o fio da meada da reforma tributária tão embaralhada. Quem antes era supostamente contra mudanças, de repente precisará mais que todos aprovar mudanças.
Portanto, a inédita decisão do STF pode mover finalmente a reforma que todos sabem ser necessária mas que a maioria prefere a omissão no lugar da ação transformadora.
[Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 1º de março de 2010.]
Fonte: Conjur – Consultor Jurídico (03.03.10)