No Brasil, Amicus curiae só é amigo da parte

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Na última quinta-feira (2/9), quando o Supremo Tribunal Federal decidiu que programas de rádio e televisão podem fazer piadas com candidatos e que estão livres para emitir opiniões e críticas a candidaturas mesmo em período eleitoral, não foi apenas o advogado da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Gustavo Binenbojm, que subiu à tribuna da Corte para defender esse direito. O deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ) também ocupou o espaço para reforçar que as regras contestadas pelo colega limitavam o trabalho de jornalistas e humoristas.

 

Miro representava o PDT, que não era parte no processo, mas foi admitido na condição de amicus curiae. Em sua tradução literal, a expressão significa amigo da Corte. Na literatura jurídica nacional, é comumente descrito como um terceiro interessado na causa que pede o ingresso no processo para dar ao tribunal elementos para melhor fundamentar sua decisão.

 

A sustentação de Miro Teixeira, contudo, não se limitou a fornecer subsídios sobre o tema para o tribunal. Ele se empenhou abertamente em defender a derrubada dos artigos da lei que, a seu ver, tipificavam censura à liberdade de expressão e criação garantidas constitucionalmente. Ou seja, de amigo da Corte o deputado não tinha nada. Ele atuou como amigo de uma das partes e ajudou a Abert a obter a liminar pretendida com a ação.

 

Cenas como essas verificadas quase semanalmente, in loco, pela advogada constitucionalista Damares Medina, a levaram a pesquisar a influência do amicus curiae no tribunal. O resultado está no livro lançado pela editora Saraiva: Amicus Curiae — Amigo da Corte ou Amigo da Parte?, que a autora escreveu a partir de sua tese de mestrado. O resultado é uma radiografia que revela todos os lados desse instrumento, cujo uso cresce exponencialmente.

 

A autora reforça a importância da figura do amicus curiae como forma de dar voz à sociedade em discussões que influem diretamente na vida cotidiana, mas desmitifica a ideia de que o chamado amigo da Corte é uma figura neutra que entra no processo para oferecer ao tribunal informações sobre questões complexas cuja análise ultrapassa a esfera legal.

 

O livro de Damares Medina mostra que as chances de êxito de quem ajuíza um processo no STF aumentam 16% se a causa tem o apoio de amicus curiae. Os dados também revelam que a influência do apoio aumenta ainda mais a possibilidade de o processo ser conhecido pela Corte. “Quando o tribunal percebe que há vários setores da sociedade interessados no julgamento daquela questão, sua postura é a de admitir a discussão da causa. Ou seja, vale dedicar tempo para decidir aquela controvérsia”, afirma. 

 

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Damares fala sobre os resultados de sua pesquisa e conta que, apesar da influência que o amicus curiae tem sobre as decisões, as balizas para sua aplicação ainda não estão claras. Com diversos exemplos de direito comparado, a autora esclarece que os Estados Unidos são mais criteriosos do que o Brasil para admitir terceiros interessados nos processos e defende a necessidade de regras que observem o equilíbrio de forças na admissão de amicus curiae nas ações.

 

“A experiência do Supremo mostra diversos casos em que o amicus curiae ajudou a equilibrar o jogo. E outros em que ele potencializou o desequilíbrio que já havia no processo”, informa Damares. 

 

Leia a entrevista:

ConJur — O amicus curiae influencia as decisões do Supremo Tribunal Federal?
Damares Medina — Influencia. No debate acadêmico nacional, o amicus curiae sempre foi tratado como se fosse um mero terceiro que não influenciava a decisão, dava apenas um colorido diferente ao processo. Um amigo da corte. Isso deu ao amicus curiae, no Supremo, muita liberdade de atuação. Havia um discurso até politizado de que ele democratizava, pluralizava a discussão. Enquanto isso, a participação do amicus curiae cresceu muito. Se cresceu, alguma eficácia ele tem.

ConJur — A senhora diria que ele desequilibra o jogo?
Damares — A experiência do Supremo mostra diversos casos em que o amicus curiae ajudou a equilibrar o jogo. E outros em que ele potencializou o desequilíbrio que já havia no processo.

ConJur — Acabou a visão romântica sobre o amicus curiae?
Damares — Há mais de quatro décadas a literatura internacional retrata a influência do amicus curiae. No Brasil ainda existia uma lacuna grande. Ninguém questionava o porquê de o amicus curiae atuar e qual o interesse das partes do processo no ingresso de um terceiro. Minha pesquisa mostra que ele influencia e pode mudar o jogo. Não está lá como figurante. 

ConJur — A senhora pode dar um exemplo?
Damares — A discussão que antecedeu a edição da Súmula Vinculante 4 do Supremo, que veda o uso do salário mínimo como indexador da base de cálculo de vantagens de servidores públicos e empregados, é um bom exemplo. O plenário julgou o Recurso Extraordinário 565.714, no qual se discutiu a vinculação do adicional de insalubridade ao salário mínimo. Tratava-se de recurso de servidores públicos do estado de São Paulo. A ministra Cármen Lúcia admitiu a Confederação Nacional da Indústria (CNI) como amicus curiae em cima da hora. Na tribuna do Supremo, contra os servidores, fizeram sustentação oral a Procuradoria do estado de São Paulo, que era a recorrida, e a CNI, como amicus curiae. Ninguém fez sustentação pelo recorrente. Veja o desequilíbrio. Uma associação de servidores públicos enfrentando a Procuradoria paulista e a CNI.

ConJur — Mas a associação poderia ter sustentado, não?
Damares — Claro. A parte contrária não pode ser culpada por eventual desídia do advogado de seu adversário. Mas o fato de, nessa configuração, ainda admitir-se o ingresso de um terceiro forte como a CNI, desequilibra o jogo. A associação perdeu o recurso. Uma advogada ainda requereu o ingresso como amicus curiae na última hora, mas sua participação foi negada. São fatos como esses que distanciam a figura do amicus curiae de uma visão romântica e mostram como ele influencia no processo decisório.

ConJur — A senhora disse que a CNI foi admitida e uma advogada rejeitada, ambas “em cima da hora”. Quais os critérios para a admissão do ingresso de amicus curiae?
Damares Medina — O Supremo sempre tratou o amicus curiae com muita flexibilidade. É necessário desenvolver critérios mais objetivos para o ingresso do terceiro interessado nos processos, mais padronizados.

ConJur — As balizas não são claras?
Damares Medina — Não. O amicus curiae é um fato social. Ele existe independentemente de exposição normativa porque a sociedade encontra formas de se manifestar na jurisdição constitucional. Veja a pauta do Supremo neste segundo semestre. O tribunal decidirá temas fundamentais para regular a vida em sociedade, como cotas e interrupção de gravidez de anencefálicos, para dar apenas dois exemplos. São temas que tocam o mundo. Então, o amicus curiae sempre vai ingressar nas ações porque não é a lei que muda os fatos. Mas o Supremo sempre teve uma postura muito permissiva, flexível. Não há clareza quanto às condições objetivas de ingresso do amicus curiae nas ações. Isso causa certa insegurança jurisdicional porque, se você é parte ou amicus curiae, tem o direito de saber com objetividade porque o seu ingresso na ação foi negado e o da outra parte, permitido.

ConJur — Mas as decisões sobre isso não são fundamentadas?
Damares Medina — São. Mas não se tem certeza, por exemplo, em relação ao prazo de entrada do amicus curiae porque a lei é omissa. Não se tem certeza em relação aos limites de intervenção. O STF havia fixado que a inclusão do processo em pauta seria a data limite para ingresso do amicus curiae. Mas depois já houve casos em que se admitiu o ingresso depois dessa data. Houve casos de amicus curiae entrar depois do julgamento, na fase recursal.

ConJur — Essa regulamentação pode vir por meio de emenda regimento interno, por lei ou podem ser fixadas pela própria jurisprudência do Supremo?
Damares — Pela jurisprudência não seria tão eficaz porque os ministros se apegam muito a essa discricionariedade, a essa subjetividade da decisão. O ideal seria regular por emenda regimental, como aconteceu com a sustentação oral do amicus curiae. No julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade relatada pelo ministro Celso de Mello, depois de muito debate em plenário, garantiu-se a sustentação oral do amicus curiae, por maioria. Em seguida, aprovaram a emenda regimental para sacramentar o direito. Esse caso é paradigmático de como é possível estabelecer regras mais objetivas sobre o amicus curiae. Nos Estados Unidos, por exemplo, o terceiro interessado tem de ter a anuência da parte que pretende apoiar no processo para ingressar na causa e a parte contrária tem que ser comunicada.

ConJur — Até porque o amicus curiae pode levantar argumentos que não interessam, naquele momento, para a parte que ele está apoiando, certo?
Damares — Claro. É fundamental o diálogo entre a parte e o terceiro interessado. Primeiro, a parte não pode ficar a reboque do amicus curiae. O ideal é combinar com a parte que se está apoiando quais argumentos devem ser explorados, até para evitar que o pedido do amicus curiae apenas repita o pedido inicial, como acontece em muitos casos. Ou seja, essa exigência de anuência da parte proporciona uma coordenação das estratégias de defesa: “Eu exploro esse foco. Você entra com essa outra abordagem”. Isso enriquece o processo constitucional. 

ConJur — Ou seja, nos Estados Unidos o amicus curiae é tratado de forma mais profissional?
Damares — Eu diria que a análise de seu ingresso nos autos é mais rigorosa. Por exemplo, lá o amicus curiae tem que dizer em que medida ele apoia os argumentos da parte em favor da qual ingressou. Pode endossar apenas parte das premissas. Isso dá uma clareza informacional muito grande. 

ConJur — Seu livro traz um levantamento empírico da realidade no Brasil. As chances de uma parte realmente aumentam quando ela é apoiada por amicus curiae e a outra parte não?
Damares —Aumentam em 16%. É importante destacar que a análise quantitativa vem como suporte argumentativo. Os números não falam por si, principalmente nas ciências sociais aplicadas. De qualquer maneira, a análise quantitativa é recorrente no debate acadêmico internacional. Nos Estados Unidos, já se quantificou a influência de cada amicus curiae.

ConJur — Dê um exemplo, por favor?
Damares — Lá se estudou a atuação do solicitor general, cargo que é equiparado ao nosso advogado-geral da União. O estudo mostrou que quando ele ingressava como amicus curiae na Suprema Corte, a chance de êxito da parte que ele apoiava aumentava em 40% porque o tribunal ficava mais receoso em contrariar uma interpretação endossada pelo Poder Executivo. Há outros estudos sofisticados. Uma ex-assessora da Suprema Corte quantificou quais amici curiae mais influenciam os assessores, os ministros. Todos disseram, por exemplo, que quando chegavam memoriais de amicus curiae assinados por determinados constitucionalistas, já analisavam com um olhar diferente. Ou seja, há um olhar muito criterioso em relação ao amicus curiae lá.

ConJur — Como a senhora fez a pesquisa para chegar às conclusões que chegou?
Damares — Analisei todos os processos que foram julgados no Supremo com amicus curiae na história do tribunal. Para falar sobre influência, não podia considerar os processos que ainda estavam em curso. Para a pesquisa, selecionei apenas as ações de controle concentrado de constitucionalidade, que representam mais de 90% dos casos nos quais há a presença de amici curiae. Nas ações de controle incidental, como Recurso Extraordinário e Mandado de Segurança, a participação do terceiro interessado na causa ainda é pouco representativa em relação ao universo do tribunal. Meu universo de pesquisa foi a Ação Declaratória de Constitucionalidade, a Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Como havia apenas um caso de ADC julgado, não achei representativo e desprezei. Não havia ADPF encerrada com amicus curiae. Então, o foco foram as ADIs.

ConJur — Quantos processos foram analisados?
Damares — Eu trabalhei com 1.666 processos. Comparei ADIs julgadas com amicus curiae com as julgadas sem amicus curiae.

ConJur — Em que período?
Damares — Em toda a história do Supremo. E o resultado foi que a parte que litiga com amicus curiae tem 16% mais chances de ganhar o processo contra parte que não têm apoio de terceiro interessado na causa. Mas o dado mais relevante revelado pela pesquisa, que me permitiu estabelecer a relação entre o ingresso na ação e as maiores chances de êxito, é que o amicus curiae sempre ingressa em favor de um dos pólos do processo. Nunca é neutro. Outro dado relevante também é que o simples ingresso do amicus curiae aumenta a chance de conhecimento do processo.

ConJur — Por quê?
Damares — Porque quando a corte constitucional percebe que há vários setores da sociedade, várias entidades interessadas no julgamento daquela questão, sua postura é a de admitir a discussão da causa. Ou seja, vale dedicar tempo para decidir aquela controvérsia constitucional. E, neste caso, eu verifiquei que o ingresso do amicus curiae aumenta em 20% as chances de conhecimento do processo. Independentemente do lado que ele apoia, só o fato de existir um terceiro interessado já aumenta as chances de o tribunal admitir julgar aquele processo.

ConJur — A abertura do Supremo para as audiências públicas tem a ver com o crescimento da atuação do amicus curiae?
Damares — A audiência pública é um lócus fundamental para o amicus curiae ingressar nas ações. Primeiro, porque é um espaço completamente plural. O amicus curiae pode apresentar suas razões sem interferir no momento fundamental que é o processo decisório. Claro que neste momento ele também poderia participar. Mas se o amicus curiae tem legitimidade, tem representação social, na audiência pública isso pode ser modulado. No julgamento da ADPF 101, quando o Supremo ratificou a proibição de se importar pneus usados, foi a primeira vez em que houve preocupação objetiva com o equilíbrio de forças em relação aos amici curiae. A ministra Cármen Lúcia admitiu expressamente um número de amici curiae em defesa de uma tese e o mesmo número em defesa da outra tese. O Supremo estabeleceu, de forma inédita, uma espécie de contraditório até para os amici curiae.

ConJur — Nas audiências públicas que discutiram cotas raciais, por exemplo, muitos reclamaram que houve desequilíbrio de forças...
Damares Medina — O ministro Ricardo Lewandowski tentou equilibrar e justificou o suposto desequilíbrio com o fato de que muito mais entidades e pessoas representativas pediram para defender as cotas. Ele não poderia, por exemplo, deixar qualquer pessoa contra as cotas se manifestar se ela não comprovasse representatividade ou conhecimento cientifico no assunto para fazer uso da tribuna. Outra coisa curiosa: várias autoridades públicas quiseram se manifestar no caso das cotas. Então, fica difícil de fato para o ministro do Supremo negar a palavra a um senador, que tem representatividade porque foi eleito. É o preço da abertura da jurisdição constitucional, da pluralização do debate. Não se tem controle, de antemão, dos vetores informacionais e do possível desequilíbrio de forças, daí a necessidade do controle objetivo. Mas o fato é que essa preocupação de equilíbrio de forças que se inaugurou com a ministra Cármen Lúcia continua na agenda o Supremo Tribunal Federal.

ConJur — Antes não havia essa preocupação?
Damares Medina — Ao menos os ministros não haviam demonstrado com clareza. O ministro Marco Aurélio, por exemplo, fez três dias de audiências públicas no processo que discute a interrupção de gravidez nos casos em que o feto é anencéfalo, e não mostrou essa preocupação. Nas audiências públicas que discutiram pesquisas com células-tronco embrionárias também não se viu a preocupação com o equilíbrio de pontos de vista. Não estou dizendo que houve desequilíbrio, mas a preocupação de equilibrar com regramento claro foi inaugurada com a ADPF 101.

ConJur — Se as audiências públicas podem ser o principal palco dos amici curiae, por que a senhora não trouxe dados também sobre elas em seu livro?
Damares — Porque não podemos tratar a audiência pública no mesmo prisma do amicus curiae. O amicus curiae é um recorte. Na audiência pública, ele teria a possibilidade de atuar sem desequilibrar tanto o processo porque o Supremo já está desenvolvendo essa visão dos vetores de informação. Para falar sobre audiências públicas seria necessário escrever outro livro. Seria necessário estudar todas as audiências públicas que foram realizadas no Supremo, como é tratada a audiência pública em outros países...

ConJur — Como as audiências podem influir no processo de decisão...
Damares — Exatamente. Em que medida o que é debatido na audiência pública é trazido para o processo decisório? Por que só o ministro relator participa das audiências públicas? Elas servem para mera legitimação da decisão? Mas as respostas para essas questões fogem completamente do foco do meu livro, que procura responder uma pergunta muito especifica: O amicus curiae influencia no processo decisório. A resposta é: influencia.

ConJur — E por isso é preciso ter regras mais objetivas sobre sua participação?
Damares — Sim. Não resta dúvida de que o amicus curiae pluraliza o debate constitucional. Mas não podemos nos distanciar da necessidade de construir padrões objetivos de ingresso do terceiro na causa em busca de segurança jurisdicional, porque ele pode desequilibrar o jogo. Não falo em restringir ou impedir o acesso, mas controlar de maneira mais objetiva.

ConJur — Como a senhora vê algumas críticas ao seu livro, de que ele blinda o Supremo Tribunal Federal?
Damares — Na verdade, o livro abre o Supremo Tribunal Federal. Pela primeira vez na academia brasileira foi feita uma pesquisa empírica de como o amicus curiae se movimenta no Supremo, como ele se posiciona, como ele influencia. Todas essas questões estão respondidas no livro.

 

Por Rodrigo Haidar

 

Fonte: Conjur – Consultor Jurídico (08.09.10)


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