A prova constitui elemento de suma importância no âmbito processual, não só pela sua função de confirmar a verdade dos fatos afirmados pelas partes, como também por servir de fundamento da pretensão jurídica e de base para a formação do convencimento do magistrado. A atividade probatória é parte integrante do processo, consistindo na demonstração, pela parte, da veracidade das alegações a ele trazidas.
O ônus da prova consiste na responsabilidade atribuída à parte de ratificar suas alegações. Estabelece o Código de Processo Civil brasileiro que compete ao autor a prova dos fatos constitutivos do direito que afirma possuir, cabendo ao réu provar a existência de fatos impeditivos, extintivos ou modificativos do direito do autor.
Uma exceção a regra acima exposta encontra-se delineada no Código de Defesa do Consumidor ao instituir a inversão do ônus da prova como um dos instrumentos de facilitação da defesa dos interesses da parte hipossuficiente de uma relação de consumo.
Como será visto a possibilidade de inversão do ônus da prova, a depender de cada caso em concreto, figura como meio apto a proporcionar às partes litigantes o efetivo acesso à Justiça, na medida em que funciona como instrumento de equilíbrio para aqueles que se encontram em posição de notável desvantagem jurídica. Além disso, proporciona efetividade ao princípio da isonomia e valoriza a função do Poder Judiciário no que diz respeito à perseguição da verdade real.
É verdade que o processo tem como principal finalidade servir ao direito. Sua existência tem como ponto de partida fazer valer a justiça em cada caso concreto. Nesse sentido, seria de todo inútil a existência do processo sem que a ele estivesse atrelada a possibilidade de concretização do direito material em jogo. A observância dos princípios constitucionalmente previstos auxilia nessa busca pela obtenção do justo. E a existência de certos institutos processuais faz valer o respeito principiológico pretendido e a materialização da efetiva prestação jurisdicional.
O princípio, juridicamente falando, pode ser entendido como pressuposto, fundamento, mandamento nuclear de um sistema jurídico, o ponto de partida para a compreensão do sentido dos preceitos normativos. É por meio dos princípios que se direciona a interpretação e a aplicação das regras e que se resolve os casos de conflitos e lacunas normativas. Nas palavras de Sandra Aparecida dos Santos (2006, p. 26) “os princípios ganham vida na medida em que transformam o processo em um verdadeiro instrumento, cuja finalidade é a obtenção da justiça”.
A busca pelo respeito aos princípios constitucionalmente previstos deve ser sempre perseguida, de modo a tornar o processo uma eficiente ferramenta de solução de litígios. Se posicionar de maneira contrária aos princípios significa atentar contra a Constituição e contra o próprio ser humano, bem maior por ela velado.
No âmbito processual, o devido processo legal pode ser considerado o princípio fundamental, o qual sustenta todos os outros princípios por abranger uma série de direitos e deveres dos quais decorrem as consequências processuais garantidas aos litigantes, dentre elas a de um processo e uma sentença justos.
A oportunidade concedida aos litigantes de apresentar suas provas ao magistrado figura como um desses direitos e também possui íntima relação com os princípios do contraditório e da ampla defesa, pois propicia ao litigante a chance de ratificar suas informações e contestar de maneira fundamentada o que foi sustentado pela parte adversa.
A prova constitui importante elemento processual, sendo imprescindível para se chegar à solução dos conflitos de interesse. Não só desempenha a função de confirmar a verdade dos fatos afirmados pelas partes, como também serve de fundamento para o convencimento do magistrado.
Outro princípio de incontestável relevância no contexto processual é o princípio da igualdade, previsto no artigo 5º, caput e inciso I da Constituição, o qual consagra serem todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Não apenas a igualdade formal, mas também, e principalmente, a igualdade material deve ser observada. Para tanto, deve a lei tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades.
As ações afirmativas ou “discriminações positivas” eclodem como meios de efetivação da isonomia substancial, na medida em que é despendida a certos grupos uma maior proteção ou um tratamento diferenciado, tomando por base uma realidade histórica de marginalização ou de hipossuficiência, com o intuito de proporcionar, na medida do possível, uma igualdade de oportunidades com os indivíduos que ocupam uma posição mais vantajosa.
No campo processual, o princípio da isonomia encontra estreita relação com o instituto da inversão do ônus da prova. Nosso Código de Processo Civil distribui o ônus da prova da seguinte maneira: o autor fica responsável pela prova dos fatos que ratificam o direito que afirma possuir, cabendo ao réu provar os fatos que extinguem, impedem ou modificam o direito do autor. O problema reside no fato de que nem sempre o autor possui condições técnicas e/ou econômicas de suportar o encargo probatório que lhe foi atribuído.
Atento a tal circunstância, o Código de Defesa do Consumidor, que apresenta como uma de suas razões de ser a vulnerabilidade do consumidor e sua posição de desvantagem técnica e jurídica em face do fornecedor, instituiu como direito básico daquele a facilitação da defesa dos seus interesses, inclusive com a possibilidade de inversão do ônus da prova a seu favor quando verossímil a alegação ou for ele hipossuficiente.
É certo que os pólos da relação de consumo (consumidor/fornecedor) são compostos por partes desiguais em ordem técnica e econômica, visto que o fornecedor possui, via de regra, a técnica da produção que vai de acordo com seus interesses e o poder econômico superior ao consumidor. A vulnerabilidade do consumidor é patente, e a garantia de sua proteção é uma consequência da evolução jurídica pela qual passamos.
A inversão do ônus da prova nas ações decorrente de relações de consumo consiste em importante inovação jurídica, permitindo a concretização da prestação jurisdicional eficaz, na medida em que proporciona ao consumidor situação de razoável equilíbrio face ao fornecedor, que se encontra em posição de vantagem sobre aquele.
A possibilidade da inversão prevista no CDC além de tornar concreto o princípio da isonomia, na medida em que proporciona uma paridade de armas entre os litigantes, também consagra o princípio do efetivo acesso à Justiça, assegurando ao autor que a procura pelo Poder Judiciário não será em vão diante da sua real impossibilidade de produzir as provas necessárias à confirmação do seu direito. Isto porque o acesso à Justiça não deve ficar limitado somente ao direito de petição, acima de tudo, deve ser caracterizado pelo exercício do direito de obter a completa e justa solução dos conflitos.
Observa-se que o código consumerista apresenta inegável avanço na luta pela proteção dos direitos dos cidadãos, refletindo não apenas no campo material, no qual as proteções à vida, à saúde e à segurança apresentam-se como fundamento, como também na esfera processual, por meio de princípios, instrumentos e mecanismos que proporcionem efetividade aos objetivos pretendidos.
A inversão, contudo, não se opera de maneira automática. A ausência de paridade de armas e a situação de desequilíbrio entre as partes litigantes aliadas com a incapacidade probatória do autor é que justificam a inversão. Assim, com acertada prudência, e tendo em vista não tornar o instituto um instrumento propiciador de favorecimentos injustificáveis, é que o próprio CDC estabeleceu requisitos para a concessão do benefício. Nesse sentido, a inversão só será concedida quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação do autor ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência.
Seguindo a linha de raciocínio de que o processo é um instrumento a serviço da Constituição, torna-se ineficaz atribuir direitos subjetivos materiais às pessoas sem lhes garantir os instrumentos e meios processuais e procedimentais indispensáveis à realização do referido direito. Nesse sentido, para que sejam asseguradas as garantias fundamentais e a proteção aos direitos constitucionais fazem-se indispensáveis a elaboração e aplicação de institutos que auxiliem os cidadãos na busca pela consecução dos seus direitos.
O disposto no artigo 6º, inciso VIII, do CDC, o qual prevê a inversão do ônus da prova em favor do consumidor como meio de facilitação do seu direito, constitui importante instrumento de proteção da parte hipossuficiente de uma relação de consumo.
Nas ações onde a desigualdade técnica e jurídica é patente, como na maioria das ações consumeristas, a possibilidade da inversão do ônus da prova pode afetar de maneira positiva o desenvolvimento da demanda, auxiliando o magistrado no conhecimento da verdade real para melhor prolatar uma sentença justa, o que, de uma maneira geral, auxilia na efetividade do poder Judiciário.
Como dito, a inversão do ônus da prova eclode como um instrumento concretizador de diversos princípios constitucionais, como o princípio da isonomia, do contraditório e da ampla defesa e da inafastabilidade da jurisdição, uma vez que resgata o equilíbrio inexistente entre as partes, proporcionando ao litigante hipossuficiente condições de demandar com igualdade, proporcionando um efetivo acesso à Justiça.
A legitimidade da inversão encontra-se na viabilização da defesa do direito da parte hipossuficiente em juízo. Sendo assim, é forçoso que, para facilitar a defesa do litigante, seja necessária, ou extremamente útil, a medida. Sendo assim, torna-se necessária uma ampliação no ponto de vista dos operadores do Direito a respeito dos conflitos sociais emergentes para que a aplicação do instituto da inversão do ônus da prova não se restrinja as demandas que envolvem relações consumeristas, mas se expanda para todas aquelas em que a ampla produção probatória e, consequentemente, a justa solução do litígio, fique inviabilizada sem a utilização da medida.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003.
BELLINI JÚNIOR, Antonio Carlos. A inversão do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Campinas, SP: Servanda, 2006.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Volume I. 13 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Volume III. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2005.
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.
SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A inversão do ônus da prova: como garantia constitucional do devido processo legal. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
Por Guido Maria Ferreira de Araújo Junior e Juliana de Medeiros Araújo Salvia
Fonte: Conjur – Consultor Jurídico (29.01.11)