Comissão de Veneza cria manual do Estado de Direito

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Que o tão falado Estado de Direito é fundamental para toda e qualquer democracia, todos sabem. Definir, ponto a ponto, o que garante que um país o viva já são outros quinhentos. Com o objetivo de criar um conceito universal e pragmático das garantias de uma democracia, a Comissão de Veneza elaborou perguntas que ajudam a definir se em determinado país impera o Estado de Direito.


O relatório foi preparado por um grupo de especialistas da Comissão, órgão consultivo do Conselho Europeu que, desde 2002, se abriu para países fora da Europa. Hoje, além dos 47 países europeus, fazem parte da Comissão de Veneza o Brasil, Quirguistão, Chile, Coreia, Marrocos, Argélia, Israel, Tunísia, Peru e México. O grupo formado por um holandês, um suíço, um inglês e um finlandês se debruçou sobre as inúmeras traduções que o conceito ganha em cada língua e Estado para tornar universalmente palpável um conceito até então abstrato.


O manual elaborado por eles foi aprovado no último encontro da Comissão de Veneza, que aconteceu na cidade italiana nos dias 25 e 26 de março. O ministro Gilmar Mendes representou o Brasil na reunião. Foi ele, durante o período em que presidiu o Supremo Tribunal Federal, quem trabalhou para incluir o Brasil no grupo.


O texto foi adotado com o objetivo de servir de guia tanto para a Justiça nacional como para as cortes internacionais analisarem se o Estado de Direito está sendo respeitado. “Especialmente nas novas democracias, os valores do Estado de Direito ainda precisam de sedimentação, ou seja, eles precisam se tornar prática diária”, constata o relatório.


A existência do conceito está assegurada nos textos constitucionais dos países democráticos, em tratados internacionais e em estatutos de órgãos como a ONU, a União Europeia e o próprio Conselho da Europa. Foi nas inúmeras interpretações e no consenso que está se formando ao longo dos anos que a Comissão definiu os seis pontos que determinam a existência do Estado de Direito.


O primeiro deles é a legalidade, que inclui um processo transparente, responsável e democrático para aprovar as leis no país. Uma vez aprovada, a lei precisa ser seguida, seja pelos cidadãos como pelas autoridades. De acordo com o princípio da legalidade, uma pessoa só pode ser punida se assim a lei determinar.


O segundo ponto a ser observado é a segurança jurídica. Para isso, a lei precisa ter um texto claro, preciso, acessível e ser respeitada. É fundamental que as regras do jogo sejam bem claras para que, com base na previsibilidade, todo indivíduo saiba como se portar. Para a Comissão, a retroatividade de leis contraria a segurança jurídica porque retira essa previsibilidade capaz de guiar a conduta de cada um. Julgamentos finais da Justiça devem ser obedecidos, e não questionados, salvo raras exceções. A existência de decisões conflitantes numa Suprema Corte ou Corte Constitucional contraria o princípio da segurança jurídica. Por isso, cada país deve criar mecanismos para evitar esses conflitos.


O terceiro ponto é a proibição da arbitrariedade. Logo em seguira, vem a garantia do acesso à Justiça, a partir de tribunais independentes e imparciais que possam também revisar atos administrativos. De acordo com a Comissão, é vital para o Estado de Direito que o Judiciário tenha poderes para determinar qual lei é aplicável e válida para resolver cada conflito, respeitando um sistema transparente e previsível de interpretação das normas. A Justiça precisa ser um poder sem influências externas e blindada contra manipulações políticas. Um fiscal da lei, com certa autonomia do Executivo, para apontar violações nos casos em que as vítimas se calam é fundamental.


Os outros dois pontos do manual elaborado pela Comissão de Veneza são o respeito aos direitos humanos e a não discriminação e igualdade perante a lei.


Confira abaixo as perguntas elaboradas pela Comissão de Veneza para averiguar se os seis pontos fundamentais para a existência do Estado de Direito são respeitados:


1. Legalidade (supremacia da lei)
a) O Estado age com base e em conformidade com a lei?
b) O processo de elaboração das leis é transparente, responsável e democrático?
c) O exercício do poder é autorizado pela lei?
d) Em que medida a lei é aplicada e cumprida?
e) Em que medida o governo funciona sem usar a lei?
f) Em que medida o governo usar medidas incidentais em vez de regras gerais?
g) Existem cláusulas de exceção na lei do Estado, permitindo medidas especiais?
h) Existem normas internas garantindo que o Estado cumpra normas internacionais?
i) O sistema do nulla poena sine lege (nenhuma punição sem lei prévia) se aplica?
2. A segurança jurídica
a) Todas as leis são publicadas?
b) Se há alguma lei não escrita, ela é acessível?
c) Existem limites à discrição legal concedida ao Executivo?
d) Há muitas cláusulas de exceção nas leis?
e) Há leis escritas em uma linguagem inteligível?
f) A retroatividade das leis é proibida?
g) Existe um dever de manter a lei?
h) As decisões definitivas dos tribunais nacionais são questionadas?
i) A jurisprudência dos tribunais é coerente?
j) A legislação geralmente é implementável e implementada?
j) Os efeitos das leis são previsíveis?
k) A avaliação legislativa é praticada de forma regular?
3. Proibição da arbitrariedade
a) Existem normas específicas que proíbem a arbitrariedade?
b) Há limites ao poder discricionário?
c) É garantida a publicidade de informações do governo?
d) São pedidas razões para as decisões tomadas?
4. Acesso à Justiça por meio de tribunais independentes e imparciais
a) O Poder Judiciário é independente?
b) O Ministério Público é, em certa medida, autônomo em relação ao Executivo? Ele age de acordo com a lei e não segundo conveniências políticas?
c) Os juízes estão sujeitos à influência política ou manipulação?
d) O Judiciário é imparcial? Que disposições garantem a sua imparcialidade caso a caso?
e) Os cidadãos têm acesso efetivo ao Judiciário, também para questionar atos do governo?
f) O Judiciário tem poderes suficientes de reparação?
g) As profissões jurídicas são reconhecidas, organizadas e independentes?
h) As decisões judiciais são implementadas?
i) A coisa julgada é respeitada?
5. Respeito aos direitos humanos
São os seguintes direitos garantidos (na prática):
a) O direito de acesso à Justiça: Os cidadãos têm acesso eficaz ao Poder Judiciário?
b) O direito a um juiz legalmente competente?
c) O direito de ser ouvido?
d) Ne bis in idem?
e) Não retroatividade das medidas?
f) O direito à tutela jurisdicional efetiva?
g) A presunção de inocência?
h) O direito a um julgamento justo?
6. Não discriminação e igualdade perante a lei
a) As leis são aplicadas para todos, sem discriminação?
b) Existem leis que discriminam determinados indivíduos ou grupos?
c) Há leis interpretadas de maneira discriminatória?
d) Existem indivíduos ou grupos com privilégios legais especiais?

 

POR ALINE PINHEIRO
Fonte: Conjur - Consultor Jurídico (30.03.11)


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