SENTENÇA 146/2011-A
AÇÃO ORDINÁRIA 7270-46.2010.4.01.3400
AUTOR: SINDICATO DO COMÉRCIO VAREJISTA DE PRODUTOS FARMACÊUTICOS DO ESTADO DE SÃO PAULO – SINCOFARMA - SP
RÉ: AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA - ANVISA
O autor propôs a presente ação de conhecimento para que a ANVISA se abstenha de aplicar penalidades aos seus substituídos por descumprimento da Resolução RDC 44/2009 e das Instruções Normativas 9 e 10; ou anular total ou parcialmente esses atos normativos.
Alegou, no essencial, que as referidas normas “criaram obrigações não previstas na legislação federal, quer seja na Lei 5.991/73 ou no Decreto que a regulamenta, quer seja em qualquer outro diploma legal”.
2. A ré argüiu a limitação dos efeitos da sentença. No mérito, afirmou que “através de seu poder regulamentar em nada extrapolou as disposições legais, mas pelo contrário, apenas detalhou a legislação em referência, o que como se viu pelo entendimento do STJ já proibia a venda por farmácias e drogarias de produtos estranhos à atividade das mesmas”.
A Lei 5.991/73 e o Decreto 74.170/74 que a regulamenta, estabelecem normas gerais de proteção e defesa da saúde que prevalecem sobre a legislação estadual.
3. Deferida, em parte, a antecipação dos efeitos da tutela de cuja decisão a ANVISA interpôs agravo de instrumento. O autor replicou reiterando o pedido. Não requerida a produção de provas em audiência, procede-se ao julgamento da lide
nos termos do art. 330/I do CPC.
FUNDAMENTOS DO JULGADO
4. PRELIMINAR. A limitação territorial prevista no art. 16 da Lei 7.347/1985 e no art. 2º-A da Lei 9.494/1997 somente se aplica, respectivamente, à ação civil pública e à “proposta por entidade associativa” – que não se verifica no caso:
Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.
...
Art. 2o-A. A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator.
5. O autor é um “sindicato”, que não se confunde com “entidade associativa”.
Eles são tratados distintamente pela Constituição (arts. 8º/III e 5º/XXI). Ademais, é incompreensível o foro competente da autarquia/ré no Distrito Feral (onde está localizada sua sede: CPC, art. 100/IV alínea “a”), e a sentença não beneficiar os substituídos do autor, todos domiciliados no Estado de São Paulo!
6. Casuisticamente, o legislador confundiu “limites subjetivos da sentença” com “competência do juízo” (vara ou tribunal). A jurisdição é a capacidade de qualquer juízo ou tribunal competente para a causa dizer o direito. A competência é uma
parcela dessa função somente para efeito de divisão racional do trabalho e não para limitar os efeitos subjetivos da sentença a determinado território.
7. Assim, considerando a indivisibilidade da função jurisdicional, a sentença proferida no juízo competente produz efeitos em todo o território nacional, beneficiando ou prejudicando as partes entre as quais foi dada (CPC, art. 472). Se assim não fosse, a parte beneficiada por sentença proferida em São Paulo teria de propor outra ação em Brasília para reconhecer o mesmo direito nesta última Capital!
8. Ademais, admitida pela Constituição a legitimação extraordinária de entidades associativas para propor ação coletiva em favor de seus substituídos sem nenhuma restrição (art. 5º/XXI), a Lei 9.494/1997 não podia dizer que a sentença só beneficia pessoas domiciliadas “no âmbito da competência territorial do órgão coator” (art. 2º-A)! Isso é um grande absurdo.
9. MÉRITO. Adotam-se aqui as mesmas razões da decisão antecipativa de parcial tutela:
“Uma das questões dos autos deriva da regulamentação estatuída pela ANVISA pela RDC nº 44/09, especificamente no que diz respeito ao art.
2º, inc. IV e parágrafo primeiro, assim redigidos:
Art. 2º As farmácias e drogarias devem possuir os seguintes documentos no estabelecimento:
(...);
IV- Certidão de Regularidade Técnica, emitido pelo Conselho Regional de Farmácia da respectiva jurisdição; e
(...).
§1º O estabelecimento deve manter a Licença ou Alvará Sanitário e a Certidão de Regularidade Técnica afixados em local visível ao público.
Sustenta o autor que a Anvisa possui estreito limite de atuação no exercício do poder normativo, não podendo ela criar restrições não previstas em lei, como é o caso da exigência da referida Certidão de Regularidade Técnica.
O poder normativo da Agência está expresso no art. 2º, III da Lei nº 9.782/99: “normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde;” bem como no art. 7º, III: “Compete à Agência proceder à implementação e à execução do disposto nos incisos II a VII do art. 2º desta Lei, devendo: (...) III - estabelecer normas, propor, acompanhar e executar as políticas, as diretrizes e as ações de vigilância sanitária;”.
Ademais, o poder regulamentar está expressamente conferido no art. 8º da mesma lei, que dispõe: “incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública”, aí incluídos, logicamente, os medicamentos de uso humano, conforme previsto no § 1º, I, do mesmo artigo.
Entendo que a regulamentação ora impugnada não desborda dos limites de atuação do poder normativo da Anvisa, pois diz respeito ao controle da regularidade de funcionamento
das farmácias, que comercializam produtos, substâncias e serviços com risco para a saúde humana, cujo controle e fiscalização são atribuídos à Anvisa.
Além disso, cabe observar que não foi a Anvisa que instituiu tal Certificado de Regularidade. A exigência de apresentação do Certificado de Regularidade Técnica, contida na RDC ora atacada, constitui mera repercussão de requisito de funcionamento imposto originariamente pelo Conselho Federal de Farmácia, conforme estabelecido na Resolução nº 521/2009, arts. 55 a 58, a qual foi
expedida no âmbito do poder regulamentar do exercício da profissão de farmacêutico.
Assim, caberia ao autor atacar a norma editada pelo Conselho Federal de Farmácia, que instituiu tal Certificado, e não a norma da Anvisa.
A IN nº 10/09 dispõe sobre os medicamentos isentos de prescrição que poderão permanecer ao alcance dos usuários por meio de auto-serviço.
Entretanto, a disposição é inovadora no mundo jurídico por não encontrar amparo legal que a sustente. A Lei nº 5.991/73, que dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, nada dispõe sobre o assunto. De forma que a ANVISA não pode editar norma sem o lastro legal, o que desborda de sua função normativa e regulamentar.
A IN nº 9/09, a seu turno, dispõe sobre a relação de produtos permitidos para dispensação e comercialização em farmácias e drogarias.
Valho-me, neste passo, das razões expendidas pelo Juiz Federal Substituto da 5ª Vara nos autos do processo nº 2009.34.00.033821-4, que foi mantida incólume pelo ilustre relator Daniel Paes Ribeiro no Agravo de Instrumento 0069596-91.2009.4.01.0000, nestes termos:
“Quanto ao segundo ponto, ou seja, de que produtos podem ser comercializados nas farmácias e drogarias, a questão é mais complexa.
Vejamos.
Como já foi dito acima, o comércio de drogas e medicamentos é objeto da Lei nº 5.991/73, que sofreu algumas modificações pela Lei nº 9.069, de 29 de junho de 1995, modificações essas que acabaram gerando uma aparente incoerência na lei.
De fato, quem pode comercializar drogas, medicamentos e insumos farmacêuticos, a teor da Lei nº 5.991/73?
O seu artigo 5º afirma que esse comércio é privativo “das empresas e dos estabelecimentos definidos nesta lei”.
Confira-se:
Art. 5º. O comércio de drogas, medicamentos e de insumos farmacêuticos é privativo das empresas e dos estabelecimentos definidos nesta Lei.
E quais são as empresas e estabelecimentos definidos na lei? Verificando o artigo 4º, verificamos que a lei define vários tipos de estabelecimento, dentre eles farmácia, drogaria, supermercado e drugstore:
Art. 4º - Para efeitos desta Lei, são adotados os seguintes conceitos:
........
X - Farmácia - estabelecimento de manipulação de fórmulas magistrais e oficinais, de comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, compreendendo o de dispensação e o de atendimento privativo de unidade hospitalar ou de qualquer outra equivalente de assistência médica;
XI - Drogaria - estabelecimento de dispensação e comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos em suas embalagens originais;
........
XVIII - Supermercado - estabelecimento que comercializa, mediante autoserviço, grande variedade de mercadorias, em especial produtos alimentícios em geral e produtos de higiene e limpeza;
..........
XX - Loja de conveniência e "drugstore" - estabelecimento que, mediante autoserviço ou não, comercializa diversas mercadorias, com ênfase para aquelas de primeira necessidade, dentre as quais alimentos em geral, produtos de higiene e
limpeza e apetrechos domésticos, podendo funcionar em qualquer período do dia e da noite, inclusive nos domingos e feriados.
Assim, se nos limitássemos aos artigos 4º e 5º da lei, concluiríamos que drogas e medicamentos podem ser comercializados não apenas, também, em supermercados (artigo 5º c/c artigo 4º, XVIII), bem como em lojas de conveniência e drugstores (artigo 5º c/c artigo 4º, XX).
Todavia, esse entendimento parece conflitar com o artigo 6º da mesma lei, que
estabelece o seguinte:
Art. 6º - A dispensação1 de medicamentos é privativa de:
a) farmácia;
b) drogaria;
c) posto de medicamento e unidade volante;
d) dispensário de medicamentos.
Parágrafo único. Para atendimento exclusivo a seus usuários, os estabelecimentos hoteleiros e similares poderão dispor de medicamentos anódinos, que não dependam de receita médica, observada a relação elaborada pelo órgão sanitário federal.
Como compatibilizar, então, os artigos 5º e 6º da lei?
Parece-me que a solução deve ser feita entendendo-se que supermercados, lojas de conveniência e drugstores podem também comercializar medicamentos, mas desde que sejam, também, farmácia ou drogaria e, para que o sejam, deverão preencher os requisitos da lei, como licenciamento, condições sanitárias adequadas, existência de responsável técnico e outras.
Assim, existiria apoio legal para a prática que vem sendo adotada por alguns supermercados de, dentro de suas instalações gerais, instalarem uma drogaria.
E a conjugação dos artigos 4º, 5º e 6º da Lei nº 5.991/73 permitiria o inverso, ou seja, que farmácias e drogarias optassem por se tornarem, também, drugstores.
E a drugstore, que foi conceituada no artigo 4º, XX, da Lei nº 5.9971/73, na redação dada pela Lei nº 9.069/95, como “estabelecimento que comercializa diversas mercadorias, com ênfase para aquelas de primeira necessidade, dentre as quais alimentos em geral, produtos de higiene e limpeza e apetrechos domésticos”, é um conceito que corresponde, no seu país de origem, ou seja, os Estados Unidos da América, exatamente à farmácia ou drogaria que também vende uma série de artigos de conveniência.
Assim, nas drugstores americanas, é possível comprar medicamentos, bem como os itens que a ANVISA pretende não sejam mais comercializados nas congêneres brasileiras, como pilhas, sorvetes, alimentos congelados, refrigerantes e outros.
E, como o nome drugstore não surgiu do nada, parece-me que foi justamente com a finalidade de permitir a existência desse modelo no Brasil que o legislador introduziu, pela Lei nº 9.069, de 29 de junho de 1995, a drugstore no sistema jurídico brasileiro.
Restaria, então, a questão da previsão do artigo 55 da Lei nº 5.991/73, que tem a seguinte redação:
Art. 55. É vedado utilizar qualquer dependência da farmácia ou da drogaria como consultório, ou outro fim diverso do licenciamento.
Parece-me que considerar vigente, em sua literalidade, o artigo 55 implicaria em tornar letra morta as alterações introduzidas na Lei nº 5.991/73 pela Lei nº 9.069/95 que, ao incluir, dentre outras, as drugstores no artigo 4º da Lei nº 5.991/73 permitiu que essas comercializassem medicamentos, com base no artigo 5º (sujeitas às restrições decorrentes do artigo 6º, ou seja, sujeitas a, também, preencherem os requisitos para serem farmácias ou drogarias).
Ora, considerando que a lei nova revoga a anterior no que com ela for incompatível, a conclusão é de que o artigo 55 teve a sua previsão parcialmente revogada, de forma que a restrição que ele estabelece é para qualquer dependência da farmácia ou da drogaria como consultório ou outro fim diverso do licenciamento, que não o funcionamento simultâneo da farmácia ou drogaria como drugstore.
E a interpretação que veio de expor compatibiliza a Lei nº 5.991/73 com a Constituição que, em virtude do princípio da proporcionalidade, cuja existência é pacificamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, não admite a existência de leis que não tenham um fundamento razoável.
Assim, se a Lei nº 5.991/73 simplesmente proibisse que farmácias e drogarias comercializassem outros produtos sem que existisse qualquer prejuízo dessa comercialização para a saúde, ela seria inconstitucional por contrariar o princípio da proporcionalidade.
Concluo, portanto, numa análise preliminar, que existe amparo legal para que farmácias e drogarias atuem, também, como drugstores, comercializando, também, “diversas mercadorias, com ênfase para aquelas de primeira necessidade, dentre as quais alimentos em geral, produtos de higiene e limpeza e apetrechos domésticos”, como previsto no artigo 4º, XX, da Lei nº 5.991/73.
Consequentemente, numa análise inicial, inválida a restrição trazida pela ANVISA através da RDC nº 44/09 e da Instrução Normativa nº 9/09, estabelecendo a relação de produtos permitidos para dispensação e comercialização em farmácias e drogarias.”
Quanto aos uniformes de identificação (funcionários e farmacêutico) e treinamento de funcionários da limpeza, igualmente não há previsão legal para a imposição destas normas, sobretudo por não encerrarem disposições correlatas com o controle sanitário, considerando que os medicamentos são acondicionados em embalagens próprias, sem contato direto com as pessoas.”
DISPOSITIVO
10. Acolho o pedido, em parte, para “desobrigar os representados do sindicato-autor de cumprir as disposições das Instruções Normativas da ANVISA nºs 9/2009 e 10/2009, bem como aquelas inseridas nos arts. 17, 25, 29, 40, § 2º, e 52, § 2º da
RDC nº 44/2009”. A ré pagará a verba honorária de R$ 3.000,00 e reembolsará as custas antecipadas.
11. Publicar: decorrido o prazo de 15 dias, intimar a ANVISA; se não houver recurso, requeira o autor o que for de direito em cinco dias.
Brasília, 18 de abril de 2011
NOVÉLY VILANOVA DA SILVA REIS
Juiz Federal da 7ª Vara
Fonte: SEÇÃO JUDICIÁRIA DO DISTRITO FEDERAL (18.04.11)