Na briga de liminares desencadeada pela interdição de frentes de trabalho na Fazenda Cruzeiro do Sul, nas quais atuavam 827 cortadores de cana — 285 indígenas e 542 migrantes do Nordeste e de Minas Gerais — quem está levando a pior é o combate ao trabalho escravo. De propriedade da Infinity Agrícola, a fazenda fica no município de Naviraí, em Mato Grosso so Sul e produz cana-de-açúcar para abastecer usinas de álcool etílico.
No episódio mais recente do caso, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro João Oreste Dalazen, manteve a decisão que suspendeu a interdição das frentes de trabalho decretada por auditores-fiscais do Ministério do Trabalho. Segundo o ministro, “os auditores-fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego não dispõem de poderes para interditar diretamente a atividade econômica ou o estabelecimento da requerente, muito menos, para determinar a rescisão dos 827 contratos de trabalho dos empregados nas frentes de corte de cana-de-açúcar”.
A prevalecer tal tese, a atuação da Fiscalização Móvel que combate o trabalho escravo sofrerá profundas mudanças, estando sujeita a interferências políticas.
De acordo com o entendimento do presidente do TST, “o artigo 161 da CLT (...) conferia aos antigos delegados regionais do Trabalho a prerrogativa de interditar estabelecimento, à vista de laudo técnico do serviço competente que demonstrasse grave e iminente risco ao trabalhador. Tal prerrogativa não foi estendida aos auditores-fiscais do trabalho”. Dalazen afirma que esta atribuição é do superintendente regional do Trabalho cabendo aos auditores apenas “propor” a interdição. Os cargos de superintendentes do MTE são, reconhecidamente, ocupados por indicações de políticos da base aliada.
Dia de chuva
No dia 28 de junho, uma equipe do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho com oito auditores, acompanhados do procurador do Trabalho Jonas Ratier Moreno e de quatro agentes da Polícia Federal interditaram todas as frentes do corte de cana por constatarem a infração de mais de 20 itens das normas trabalhistas.
No dia, chovia e a temperatura ambiente era de aproximadamente 10 graus. Apesar disto, os 827 homens eram obrigados a permanecer no campo. Em dias de chuva, por conta da baixa produtividade, segundo relatou João Barros de Lima em depoimento aos auditores do MTE, há cortadores de cana que conseguem, no máximo, a diária de R$ 2,00.
Segundo o Termo de Interdição, assinado no dia 30 de junho pela coordenadora do grupo, a auditora Camilla de Vilhena Bermegui e pelo engenheiro Luiz Carlos Dops Santos Cruz, também auditor, a fiscalização constatou a não utilização dos equipamentos de proteção individual (EPI) pela maioria dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que os poucos equipamentos que eram usados por alguns ou estavam sem o Certificado de Aprovação pelo Ministério do Trabalho ou estavam rasgados e estragados. Um exemplo eram os óculos de tela, usados como proteção à vista, cujo certificado foi negado pelo ministério. Havia ainda calçados de proteção e luvas rasgados sem que houvesse a sua substituição. Muitos não trajavam o mangote — cobertura do tórax e do braço usado para segurar a cana — ou usavam o material rasgado, sem garantir a proteção total do corpo.
A inspeção chegou em um momento de chuva torrencial, mas os trabalhadores, por exigência dos prepostos dos patrões, continuavam no campo sem qualquer espécie de proteção. Só dispunham de capas de chuva os “fiscais de turma”. Segundo o relatório, no campo, as instalações sanitárias se resumiam a “um buraco no chão com uma pequena caixa para sentar abrigadas por uma barraca de lona”, distante da área de trabalho, o que levava muitos dos cortadores de cana a fazerem suas necessidades fisiológicas no mato.
A comida era servida sem qualquer higiene, sequer havia água para os cortadores de cana lavarem as mãos. Também inexistia acomodação suficiente para todos almoçarem sentados, obrigando a comerem no chão. O cardápio composto de arroz, feijão e uma mistura de carne eram levados ao canavial em três hot boxes. Enquanto os próprios cortadores serviam-se do arroz e feijão, um deles era encarregado de servir a carne, sem que tivesse como lavar as mãos.
No relatório preliminar de fiscalização elaborado em 7 de julho, a coordenadora do grupo de fiscalização, Camila, e o subcoordenador, Carlos Fernando da Silva Filho, explicam que os “cuidados específicos com a carne servida é decorrente apenas do valor do alimento, que necessita de maior controle da quantidade servida”.
A água para o consumo humano não passava por qualquer espécie de filtragem e era levada às frentes de trabalho em garrafões em péssimo estado de conservação, inclusive sem tampas, de acordo com os auditores. Os ônibus, além da má conservação, não tinham documentação em ordem nem eram próprios para este serviço.
Neste segundo relatório os auditores concluem que “há condições degradantes a que estão submetidos os trabalhadores de corte manual de cana-de-açúcar, uma vez que nem o patamar mínimo de direitos relativos ao conforto e segurança no local de trabalho estão respeitados”.
As liminares
A Infinity recorreu à Justiça do Trabalho de Brasília e conseguiu liminar para suspender a interdição. A juíza da 20ª Vara do Trabalho da 10ª Região (Brasília), Marli Lopes da Costa de Góes Nogueira, na sua decisão em Mandado de Segurança (MS 0001029-41.2011.5.10.0020), não comentou a situação dos trabalhadores e abordou apenas dois pontos. Primeiro entendeu que os auditores do trabalho “extrapolaram os limites de sua competência ao interditar os trabalhos de corte manual de cana em todas as frentes de trabalho da propriedade, e ao determinar a rescisão indireta dos contratos de trabalho, quando poderiam apenas propor as ditas medidas”.
Segundo a juíza, “a demora na prestação jurisdicional poderá acarretar sérios prejuízos à atividade econômica da impetrante, bem como a inclusão indevida do seu nome na chamada "lista suja" poderá gerar efeitos devastadores em sua reputação”.
Concedida no dia 5 de julho, a liminar da juíza Marli foi cassada duas semanas depois, em um recurso interposto pela Advocacia-Geral da União junto à presidência do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região. Ao apreciar a questão, o desembargador Federal do Trabalho Ricardo Alencar Machado considerou que a 20ª Vara de Brasília é incompetente para apreciar a questão. Como destacou, “a documentação acostada revela que apenas a Dra. Camilla de Vilhena Bemergui, coordenadora do Grupo Especial de Fiscalização, atuando na cidade de Naviraí (MS), é quem expediu os atos impugnados. Portanto, s.m.j., a competência seria da Vara do Trabalho de tal cidade”.
Ele também estranhou a opção pelo Mandado de Segurança, porque, como observou, essa medida não comporta “dilação probatória e os temas em exame estão a reclamar intensa apuração e confrontação, aliás, conforme implicitamente admite a empresa impetrante ao clamar pela observância do contraditório e da ampla defesa”. Por fim, o desembargador deixou claro não vislumbrar ilegalidade na decisão dos auditores do trabalho, destacando que “o esforço no combate ao regime de trabalho análogo ao de escravo deve reunir todos os segmentos da sociedade organizada e o valor a ser considerado, sem nenhuma dúvida, é o da preservação do trabalhador”. Ele não vislumbrou “qualquer ilegalidade nas condutas dos órgãos fiscalizadores, visto que pautadas no ordenamento legal e na preservação da dignidade da pessoa humana”.
Na última quarta-feira (21/7), porém, a decisão do desembargador Machado foi derrubada por uma nova liminar desta vez concedida pelo presidente do Tribunal Superior do Trabalho, ministro João Oreste Dalazen na Reclamação Correicional (4313-96.2011.5.00.0000) interposta pela empresa agrícola. A liminar só foi publicada no sábado, mas na quinta-feira, os representantes da empresa já dispunham de uma cópia nas mãos para forçar a fiscalização a suspender seus trabalhos.
O advogado da Infinity, Giovani Maldi de Melo, alegou não existir “efetivo interesse público na suspensão de segurança concedida pelo TRT da 10ª Região, porquanto não se verificou hipótese de lesão grave à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”. Expôs ainda que a “interdição das atividades das frentes de trabalho, no corte de cana-de-açucar, significa para a empresa prejuízo semanal da ordem de R$ 15 milhões, além de configurar prejuízo à ordem econômica”.
O ministro Dalazen, na sua decisão, de pronto acata a Reclamação alegando que, embora haja a possibilidade de Agravo para combater o ato impugnado, não fica afastado o “cabimento da presente Reclamação Correicional, haja vista a potencial e imediata eficácia lesiva da decisão impugnada, em contraponto ao efeito meramente devolutivo do Agravo”.
Ele classifica a decisão do presidente do TRT como um ato atentatório à boa ordem processual, pois não indicou nem demonstrou “a presença dos requisitos legais, cingindo-se a reapreciar o mérito do termo de interdição lavrado pelo órgão do Ministério do Trabalho e Emprego”. Afirma ainda que na suspensão de liminar, “não se reaprecia o mérito do processo principal, mas tão somente a ocorrência dos aspectos relacionados à potencialidade lesiva do ato decisório em face dos interesses públicos relevantes tutelados em lei”. E continua: “por isso, até mesmo o exame da legalidade da decisão liminar suspensa ultrapassaria os limites estabelecidos pela Lei 8.437/1992”.
Após discorrer sobre a impossibilidade de interdição pelos auditores do trabalho, o presidente do TST alegou, por fim que a medida adotada em Naviraí poderá “gerar imediatas e indesejáveis consequências sociais e econômicas ao empregador e, também, aos empregados”. Lembrou que a empresa “encontra-se em processo de recuperação judicial e a interdição de suas atividades e a inclusão do nome da empresa na lista de empregadores que mantêm trabalhadores em condições análogas à de escravo frustraria, significativamente, o intuito da Lei 11.101/2005, porquanto impediria o cumprimento das obrigações estabelecidas no plano de recuperação judicial”.
Argumentou ainda que ao impedir a continuidade da colheita da cana, “será vã qualquer tutela jurisdicional ulterior em sede de Mandado de Segurança”. Pesou na decisão o fato de que “a recuperação judicial tem por escopo não apenas ‘salvar’ a empresa, mas, igualmente, preservar os empregos por ela gerados. Nesse aspecto, inquestionável que haveria nefasta consequência também para os trabalhadores o restabelecimento da eficácia do termo de interdição, uma vez que perderiam seus empregos. Desse modo, além do tumulto processual pela forma com que se decidiu no Regional o pedido de “suspensão de liminar”, o acolhimento de tal pleito, a prevalecer, poderá acarretar dano de difícil reparação à ora Requerente e aos seus empregados”.
Por Marcelo Auler
Fonte: Conjur - Consultor Jurídico (26.07.11)