Não há como subestimar a importância das forças regionais na política brasileira. Foram elas que garantiram nossa integridade territorial e, por consequência, uma diversidade econômica, cultural e ecológica que confere ao Brasil papel de relevo no cenário internacional.
De outro lado, como uma espécie de paga pelo esforço em favor da unidade territorial, sempre reclamaram uma maior descentralização político-administrativa, da qual resultou, por exemplo, uma meticulosa partilha de rendas, em boa parte abrigada no texto constitucional.
Infelizmente, à minuciosa partilha não correspondeu uma minimamente consistente discriminação de encargos públicos, gerando sobreposição de competências e desperdícios, para não falar da irracionalidade das transferências de recursos oriundos de emendas parlamentares, que, por sua vez, se inscrevem em um tenebroso jogo de barganhas políticas e de corrupção.
Esse federalismo imperfeito, em maior ou menor grau, sempre viveu em ebulição. Agora, especificamente, se avizinha uma crise de grandes proporções.
A possibilidade de aprovação, no Congresso Nacional, de projetos que pretendem aumentar os recursos destinados à saúde e fixar um piso nacional para as polícias estaduais implicarão dispêndios incompatíveis com a já elevada carga tributária brasileira. Aqui não se faz um juízo de valor sobre esses projetos, mas uma simples constatação de incompatibilidade com os recursos disponíveis.
Governar exige arbitrar conflitos de razão e eleger prioridades. Tratamentos preferenciais para determinadas políticas públicas é um ato de escolha que repercute em desfavor de outras. Quando não se cuida adequadamente dessas equações fiscais o desastre costuma bater à porta, a exemplo do que se ora se vê em vários países europeus.
Em outra linha de raciocínio e tendo em conta a histórica indisposição para tornar mais eficiente a administração pública brasileira, aqueles projetos, se aprovados, sem nenhuma dúvida, irão exigir aumento da carga tributária, o que significa drenar maior volume de recursos da sociedade para o Estado, em detrimento dos investimentos privados. Os problemas, todavia, não se encerram aí.
Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucionais os vigentes critérios de rateio do Fundo de Participação dos Estados (FPE), modulando seus efeitos até 31 de dezembro de 2012. Findo esse prazo, sem a construção de novas regras compatíveis com a Constituição a sanção será suspender as transferências à conta daquele Fundo. Caso isso venha a acontecer, teremos um caos jamais visto nas contas estaduais.
As perspectivas de elevação das transferências para os estados, em virtude dos royalties decorrentes da exploração do pré-sal, motivaram o Congresso a alterar os controversos critérios de rateio, em vigor, substituindo-os pelos do FPE.
Ainda que a norma aprovada pelo Congresso tenha sido vetada pelo Poder Executivo, a simples possibilidade de apreciação do veto faculta imaginar uma situação absolutamente esdrúxula, que consiste em substituir critérios inconsistentes por outros tidos como inconstitucionais.
Sempre afirmei que a guerra fiscal do ICMS decorria de flagrante descumprimento de lei. Instaurou-se uma anomia generalizada, às vezes hipocritamente censurada pelos próprios praticantes da ilegalidade.
Ainda que não se possa comprovar a existência de nexo causal, a guerra fiscal ganhou proporções espetaculares a partir da exagerada autonomia concedida aos estados, pela Constituição de 1988, na formulação da política do ICMS combinada com o completo alheamento do governo federal em relação a essa mesma política, simbolizado pela extinção, no início dos anos 1990, da Secretaria de Economia e Finanças (SEF), no Ministério da Fazenda, e da Secretaria de Articulação com os Estados e Municípios (Sarem), no Ministério do Planejamento.
Os legisladores constitucionais e o governo federal não entenderam que o ICMS só por absurdo conceptual é tributo cometido aos estados. Admitida, contudo, essa incongruência como fato político definitivo, jamais se poderia prescindir de uma coordenação nacional, capaz de prevenir conflitos e articular interesses virtualmente antagônicos.
Nesse contexto, o ICMS converteu-se em um primor de complexidade e de anarquia, no qual prosperam a farra das alíquotas e bases de cálculo, e a guerra fiscal.
Na busca de caminhos para lidar com os escombros da guerra fiscal, algumas ideias me assustam. Já apontei a impropriedade da adoção do princípio do destino. Vejo agora algumas propostas que pretendem alterar a exigência de unanimidade nas deliberações do Conselho de Política Fazendária (Confaz), visando à concessão de benefícios fiscais.
A fixação de um quórum para decisões colegiadas é função da natureza da matéria. Alterações constitucionais, como se sabe, são mais exigentes, em termos de quórum, do que a aprovação de uma lei ordinária, justamente para conferir maior estabilidade ao texto constitucional.
A unanimidade requerida no Confaz decorre da simples evidência de que a concessão de um benefício fiscal por um Estado repercute sobre receitas de outros. Tal exigência é também verificável na União Europeia em relação ao IVA (imposto sobre o valor agregado). Não se trata, portanto, de uma idiossincrasia tributária.
Ao contrário dos ortodoxos, não considero herética a concessão de incentivos no âmbito do ICMS, desde que nos termos de uma competição fiscal lícita, em que se abdique de soluções inconstitucionais.
Percebo, todavia, que inexistem iniciativas voltadas para coordenar o diálogo entre os entes federativos. Nesse contexto, causa espanto a apatia do Congresso Nacional e do governo federal. O risco é que as restrições temporais findem por produzir remédios improvisados, conflituosos e iníquos.
[Artigo originalmente publicado no Blog do Noblat, nesta segunda-feira (5/9/2011)]
Por Everardo Maciel
Everardo Maciel é geólogo e ex-secretário da Receita Federal.
Fonte: Conjur - Consultor Jurídico (05.09.11)