A Constituição Federal, a doutrina e a jurisprudência atual estabelecem que a quebra de sigilo é prerrogativa exclusiva do Judiciário. Em dezembro de 2010, o Supremo Tribunal Federal, por cinco votos a quatro, decidiu que a Receita Federal não pode decretar, por autoridade própria, a quebra de sigilo bancário do contribuinte.
A discussão sobre o acesso a dados sigilosos por órgãos administrativos voltará à pauta da corte, já que ao menos seis ADIs aguardam julgamento. Até lá prevalece o entendimento de que a competência nesses casos é do Judiciário.
Hoje, o debate volta à tona diante da investigação comandada pela ministra Eliana Calmon, corregedora nacional de Justiça, sobre a evolução patrimonial de juízes e desembargadores. O Regimento Interno do Conselho Nacional de Justiça, em seu artigo 8º, inciso V, autoriza a quebra de sigilo bancário e fiscal pela Corregedoria, apesar da decisão do Supremo.
Desde junho de 2010, o Banco Central faz livre compartilhamento de seus dados sigilosos com a Corregedoria Nacional de Justiça em processos administrativos contra juízes. Os argumentos que permitiram o fluxo de dados estão em parecer assinado pelo procurador-geral do BC, Isaac Ferreira. Para ele, além da autorização prevista no Regimento Interno do CNJ, o Conselho pode ter acesso aos documentos sigilosos sem decisão judicial porque é, por definição constitucional, um órgão do Judiciário.
Associações de magistrados recorreram ao Supremo contra as investigações da Corregedoria e contra a sua forma de acesso a dados sigilosos. O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Nelson Calandra afirma que "uma resolução do CNJ, por mais respeitosa que seja, não tem patamar constitucional. Para isso, precisaria ser votada pelo Congresso", afirma. "O Regimento Interno do CNJ não pode revogar o dispositivo da Constituição Federal."
Ao citar a Constituição, Calandra explica que o sigilo bancário está protegido pelo seu artigo 5ª, que estabelece que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurada a indenização pelo dano moral em virtude de sua violação.
"Além disso, o Supremo, milhares de vezes, já disse que em processo administrativo não é possível quebrar sigilo bancário de ninguém. E que isso só é possível em processo criminal que motive a ação do Ministério Público e com deferimento do juiz criminal de primeiro grau." Embora, faça parte do Judiciário, o CNJ é um órgão administrativo, sem poderes jurisdicionais. Integrantes do Supremo, como o ministro Marco Aurélio, têm repetido com insistência nesse fato ao manifestarem suas posições sobre os limites dos poderes do Conselho.
Também contrário à quebra de sigilo por parte do CNJ, o presidente da Associação dos Juízes Federais, Gabriel Wedy, disse que "a possibilidade de quebra de sigilo por órgão administrativo só ocorre em regimes totalitários em que se busca enfraquecer o Poder Judiciário".
Wedy compõe a corrente, defendida por Calandra, de que apenas o juiz com competência criminal pode pedir a quebra do sigilo de dados, e ainda, se houver algum indício de crime. "Nenhum órgão administrativo quebra sigilo sem violar a Constituição. E a CF se impõe sobre o regimento interno do CNJ, seja lá o que ele disponha", afirma.
Para o advogado criminalista Luiz Flávio Gomes, a magistratura está sendo alvo de uma ilegalidade que sempre defendeu. "Quando a doutrina garantista falou, por muitos anos, que deveríamos ter cuidado com os poderes concedidos ao Coaf e ao BC, sob a possibilidade desses poderes serem usados de forma indevida, a própria magistratura defendia que o Estado deveria ter o poder de controle sobre dados bancários e fiscais das pessoas, agora a ilegalidade se volta contra aqueles que sempre a defenderam", critica.
Também no entendimento do advogado, o regulamento interno do CNJ não ampara a quebra de sigilo. "Regimento interno e resoluções não são leis. Ninguém pode fazer ou deixar de fazer algo se não por força de lei", declara. Para ele, mesmo integrando o Poder Judiciário, o CNJ precisaria de uma decisão judicial para ter acesso aos dados.
Sigilo em excesso
Conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público, o procurador Mário Bonsaglia observa que o sigilo de dados é reconhecido pela jurisprudência brasileira. Entretanto, considera que "existe uma certa sacralização do sigilo, que embora não previsto expressamente na CF foi elevado à categoria de direitos fundamentais. O respaldo da Constituição não é expresso", aponta Bonsaglia, que vê com ressalvas alegações de que a quebra de sigilo de dados invalida provas.
Ele lembra que o MP já passou por situação semelhante à do CNJ, após a promulgação da Emenda Complementar 75/1993, que em seu artigo 8º conferiu acesso a dados sigilosos por membros do MP. O acesso às informações chegou a ser praticado pelo órgão ministerial até que o Supremo se manifestou contrário a esse direito.
Com base na lei eleitoral — que estipulava o teto do valor que poderia ser doado para campanhas eleitorais —, Bonsaglia, quando procurador do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, pediu à Receita Federal que fornecesse o rendimento ou faturamento das 200 pessoas que fizeram altas doações às campanhas. A partir dos dados recebidos, entrou com 62 representações eleitorais contra pessoas que teriam violado a lei. O TRE-SP considerou ilegais as investigações, por serem baseadas em dados obtidos de forma ilegal. O Tribunal Superior Eleitoral confirmou a decisão do Regional. "Ora, eu não pedi cópia de declaração de imposto de renda, apenas os valores brutos dos rendimentos. Considero que há exageros quando falamos de sigilos de dados."
No entendimento do procurador, o argumento do BC de que a legalidade no fornecimento dos dados ao CNJ existe a partir da premissa de que o Conselho integra o Poder Judiciário é plausível, mas ressalta que "é necessário saber o caráter dos dados".
o juiz da 2ª da Vara Criminal de Caruaru (PE), Pierre Souto Maior, defende que a discussão não deve se ater apenas às situações em que pode se dar a quebra do sigilo, ou por quem (apenas por órgão com poder jurisdicional ou também aquele com poder administrativo), mas também a que tipo de dados podem ser acessados.
O juiz entende que um órgão administrativo pode ter acesso a todos os dados que o magistrado é obrigado a fornecer ao tribunal, seja junto a este ou a outros órgãos. "Quando um juiz fornece ao tribunal sua declaração de imposto de renda, de bens, de aplicações financeiras, faz isso por uma determinação administrativa e não judicial, de forma que acredito que o CNJ pode ter acesso a estas informações sem determinação judicial, seja junto ao tribunal, seja junto a outras instituições", afirma Pierre Souto Maior.
"Apesar de o CNJ ser um órgão administrativo, ele integra a estrutura do Poder Judiciário, tendo poderes inferiores apenas ao Supremo, sendo assim não há porque algum órgão se opor a fornecer os dados" afirma.
Porém, o juiz pontua que não se trata de qualquer dado. O direito de acesso do CNJ estaria restrito aquelas informações que são de direito do tribunal, Não a qualquer outro tipo de informação que possa estar em poder do Coaf ou BC. "O juiz e o tribunal não devem opor sigilo em sua própria casa", conclui.
"O francês Antoine Garapon afirma que o Judiciário encontra-se em crise porque está dividido entre sua origem aristocrática e uma verdadeira tentação populista", diz o juiz da 43ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, Rubens Roberto Rebello Casara. "Isso, aliás, pode ser percebido na atuação tanto dos órgãos de cúpula dos tribunais quanto do CNJ. Registro que, em minha opinião, o CNJ não representa um verdadeiro controle popular sobre o Judiciário e que, mais de uma vez, já extrapolou suas atribuições constitucionais. Todavia, melhor com o CNJ, do que sem ele, tamanho é o número de distorções observadas no Judiciário brasileiro".
Para Rubens Casara, o fato de o CNJ, que é um órgão administrativo, integrar a estrutura do Poder Judiciário não faz com que seus atos se tornem jurisdicionais, o que seria necessário para a quebra do sigilo, já que os sigilos constitucionais estão submetidos à chamada "reserva de jurisdição", ou seja, podendo ser quebrados apenas por meio de decisão judicial e obedecido o devido processo legal. "No entanto, até onde sei, as informações solicitadas pelo CNJ não estavam acobertadas por esse sigilo e, portanto, não dependiam de decisão judicial para serem fornecidas. Pelas informações que tenho, nesse caso, o CNJ não errou", conclui.
Entendimento do BC
O entendimento do Supremo Tribunal Federal é o de que órgãos administrativos não podem praticar atos reservados a órgãos jurisdicionais. A nova interpretação do BC ocorreu em meio a uma sequência de solicitações da Corregedoria datadas de maio do ano passado. O pedido era relativo a dez sindicâncias em andamento na Corregedoria e solicitava acesso a declarações de capital brasileiro no exterior, remessas por contratos de câmbio e transferências internacionais em reais.
Ao fornecer os dados para a Corregedoria, o banco acatou o parecer da procuradoria, que entende ainda que a Lei do Sigilo Bancário abre espaço para que o BC encaminhe informações sigilosas a órgãos ligados à administração. São citados como exemplos desses órgãos a Advocacia-Geral da União, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, agentes fiscais e o Ministério Público.
A própria procuradoria do BC alertava que essa interpretação ainda não estava consolidada. Trecho do parecer suspenso ressaltava que "por se tratar, por conseguinte, de regra jurídica cuja validade não foi, até o presente momento, suprida por lei superveniente, e cuja constitucionalidade não foi, até aqui, afastada por julgamento dotado de eficácia erga omnes [que vincule a todos] e efeito vinculante do STF, sua higidez normativa deve ser reconhecida, estando o Banco Central do Brasil compelido ao atendimento das requisições".
O procurador-geral do BC, Isaac Ferreira, afirma que foi orientado pela Advocacia-Geral da União. “A Procuradoria-Geral do BC, sob a orientação da AGU, fixou a orientação legal da possibilidade de atendimento de requisições da Corregedoria Nacional de Justiça. E assim o fez porque toda a norma que integra o ordenamento jurídico tem presunção de constitucionalidade”, diz. Segundo ele, à época em que o parecer foi dado, não havia qualquer decisão do STF que limitasse a atribuição do conselho de requerer essas informações para apurar a possibilidade de infrações administrativas cometidas por magistrados.
Entendimentos do STF
Em artigo publicado na ConJur, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, consultor-geral da União, relata que na maioria dos países do mundo (a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos e na Europa Continental) não há necessidade de o fisco (que é um órgão administrativo) obter autorização judicial para acessar informações bancárias do contribuinte , e que apenas 18 países exigem que o fisco provoque a Justiça para obter informações bancárias dos contribuintes: 16 deles são paraísos fiscais.
Aqui no Brasil, em um dos últimos casos de acesso a dados sigilosos por parte da um órgão administrativo, que gerou polêmica, o STF se posicionou contra a quebra de sigilo após uma verdadeira reviravolta no entendimento do Supremo.
A decisão se deu quando o Supremo analisou Mandado de Segurança de uma empresa que havia sido notificada em processo administrativo fiscal a propósito da movimentação de cerca de R$ 30 milhões, em 1998. A empresa não havia informado ao fisco (que é um órgão administrativo) que movimentara tais valores, no momento fixado pela legislação. O fisco teve acesso a dados relativos à movimentação financeira da empresa durante o procedimento administrativo.
Na análise da cautelar, a maioria dos ministros mantiveram a decisão do Tribunal Regional Federal, que entendeu que o sigilo não é absoluto, que se deve respeitar a razoabilidade, que os dados apenas transitam entre as instituições bancárias e o fisco (e que portanto não há quebra de sigilo), que a regra constitucional do sigilo protege o dado contra a revelação pública. Porém, no mérito da cautelar, por 6 a 4, entendeu-se que a administração fiscal tem acesso direto aos dados bancários.
No entanto, esclareceu o consultor-geral da União, como a vitória da empresa não alcançou a cláusula da reserva de plenário (artigo 97 da Constituição) a decisão apenas se projeta nos contornos do recurso extraordinário discutido. "Permanecem incólumes os artigos 5º e 6º da Lei Complementar 105, de 10 de janeiro de 2001, bem como os dispositivos do Decreto 3.724, do mesmo dia e ano. As autoridades fazendárias podem (e devem) dirigir-se diretamente aos bancos, com o objetivo de identificar patrimônio, rendimentos e atividades econômicas de contribuintes, nas hipóteses que a legislação de regência contempla, a exemplo de processo administrativo fiscal em andamento", entende o integrante da AGU.
Para Arnaldo Godoy, "a discussão deve ser travada num ambiente mais ousado, ambicioso e dinâmico". Deve-se acompanhar o artigo 26 da Convenção Modelo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que dispõe sobre troca de informações entre autoridades competentes, na confecção e no desdobramento de tratados que cuidem de fórmulas para se evitar a bitributação internacional.
"A manter-se tendência do STF pode-se qualificar o Brasil como país sistematicamente refratário à ampla aplicação da diretiva da OCDE. Do ponto de vista institucional, e de desenho de modelo normativo orientado para o desenvolvimento, necessário que eventual posição destoante seja revista. O ambiente é de intensa cooperação internacional, especialmente à luz de algumas tendências e ênfases que se tem presentemente".
Para o consultor-geral, "é este o campo para o qual se deve levar o debate. Do contrário, aos historiadores do Direito do futuro a nossa geração oferecerá insuspeito enigma: num tempo em que o Judiciário debate a não judicialização da existência, o próprio Judiciário invocaria, em favor próprio, a prerrogativa de autorizar que o fisco tenha (ou não) acesso a dados bancários de seus contribuintes".
"Referendada posição brasileira, no sentido de se exigir autorização judicial para acesso a dados bancários do contribuinte, por parte da autoridade fiscal, corre-se o risco de que nos alistemos no sinistro rol de países refratários à transparência internacional", conclui Arnado Godoy.
Rogério Barbosa é repórter da revista Consultor Jurídico.
Fonte: Revista Consultor Jurídico (28.01.2012)