Incentivos fiscais e desenvolvimento regional

Leia em 4min 10s

O imperativo de uma reforma fiscal constitui unanimidade entre nós. É, portanto, paradoxal que mudanças nessa área apresentem tanta dificuldade para avançar. No caso do sistema tributário - apenas uma dimensão da questão fiscal -, todas as tentativas de reforma até agora foram frustradas, principalmente pela impossibilidade de reunir o necessário consenso dos entes da Federação em torno de uma agenda mínima.


Em sua essência, nosso sistema atual continua sendo o sistema de 1967 - desvirtuado e, pior, com uma carga tributária bem mais alta. Encontra-se evidentemente superado pelo tempo, dada a magnitude das mudanças ocorridas na economia brasileira desde então.


A insistência na utilização de um sistema desenhado para uma realidade econômica, doméstica e mundial, completamente diferente, produz sérias distorções na economia. Sua inadequação aos tempos atuais vem causando estragos na nossa competitividade, especialmente graves no setor industrial.



O sistema tributário está evidentemente superado pelo tempo


Igualmente importante, o sistema vem se tornando crescentemente obsoleto como esteio do pacto federativo, o grande acordo que mantém a convivência harmônica entre União, Estados e municípios. Em muitas instâncias, talvez em função da dificuldade para enfrentar de forma definitiva os problemas, soluções provisórias foram adotadas, como nos casos dos critérios de rateio dos fundos de participação e dos incentivos e benefícios de ICMS concedidos pelos Estados. Em ambos os casos, a Constituição prevê a regulamentação da matéria por meio de novas leis complementares.


No primeiro, a regra provisória de rateio, de 1989, foi declarada inconstitucional pelo STF. No segundo, a nova lei complementar do ICMS simplesmente omitiu o tema, mantendo assim a solução provisória de utilização da Lei Complementar 24, de 1975, ou seja, de obrigatoriedade da aprovação de qualquer benefício estadual de ICMS, por unanimidade, no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).


Especialmente no caso dos incentivos estaduais, de longe a mais complexa das questões federativas, a falta de uma solução definitiva vem provocando um quadro de insegurança jurídica muito preocupante, pois causa adiamentos e/ou cancelamentos de investimentos, com sérios prejuízos para a nossa capacidade de crescer e gerar emprego e renda.


Não é sustentável o contexto atual, no qual ações abarrotam a Justiça, em grande maioria arguindo a constitucionalidade dos créditos de ICMS gerados no comércio interestadual a partir de operações que auferiram benefícios/incentivos nos Estados de origem, sem que os mesmos tivessem sido aprovados pelo Confaz. O tema, inclusive, encontra-se sob a ameaça de edição de súmula vinculante pelo Supremo.


Torna-se urgente retirar o foco do debate do Judiciário, trazendo-o novamente para o campo político. Somente um grande acordo político pode pacificar o atual ambiente de conflito. A busca de uma solução para o problema requer uma reflexão sobre as causas que lhe deram origem.


A questão apresenta, sem dúvida, múltiplos aspectos. Um dos mais relevantes relaciona-se à política de promoção do equilíbrio regional. Efetivamente, a redução das disparidades regionais consta como objetivo estratégico de todos os planos nacionais de desenvolvimento. Ocorre que com o passar do tempo, por uma série de razões, a União foi paulatinamente abandonando suas responsabilidades no campo do desenvolvimento regional.


A tendência acentuou-se principalmente a partir da crise fiscal e da promulgação da nova Constituição, em 1988, que impactaram negativamente as contas federais, e da abertura ao exterior promovida em 1991. Como consequência, a União desinteressou-se dos impostos compartilhados, notadamente o IR e o IPI, que constituem a base de recursos dos fundos de participação. Essa base caiu, entre 1988 e 2010, de 78% para 48% do total de recursos arrecadados pela União, reforçando o processo de enfraquecimento dos Estados, principalmente dos menos desenvolvidos, os mais dependentes da receita proveniente dos fundos de participação.


Estados fracos enfraquecem a Federação. De fato, os Estados detêm hoje (2010) cerca de 25,3% da receita total do bolo tributário, contra 38,3% em 1965 e 30,0% em 1988. Enquanto isso, tanto a União quanto os municípios experimentaram aumentos expressivos, principalmente os últimos, que, de cerca de 8,9% em 1965, alcançaram em 2010 nada menos que 18,5% do bolo tributário. O mais grave é que tais mudanças na repartição do bolo de recursos não tiveram a contrapartida correspondente na divisão de encargos entre as três esferas.


Está claro que passou da hora para se editar uma nova lei complementar, que modernize a regulamentação da concessão de incentivos de ICMS, como prevê a Constituição Federal. É preciso encontrar uma solução que preserve o instrumento da harmonização, mas, ao mesmo tempo, devolva aos Estados, dentro de limites bem definidos, algum grau de autonomia.


Essa seria uma iniciativa importante no contexto de uma política de desenvolvimento regional, instrumento fundamental em um país como o nosso, que, a despeito do progresso alcançado em muitas áreas, apresenta ainda enormes e persistentes disparidades regionais.



Por Antonio Delfim Netto
Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras
E-mail: contatodelfimnetto@terra.com.br


Fonte: Valor Econômico (18.09.12)

 


Veja também

Quem reduzir consumo de energia terá bônus na conta, diz secretário

Bônus será para quem economizar 10% de energia com relação a 2020   O Brasil passa pel...

Veja mais
Confaz prorroga até 31 de dezembro a isenção de ICMS sobre transporte no enfrentamento à pandemia

Convênios prorrogados também amparam empresas, autorizando que os estados não exijam o imposto por d...

Veja mais
Mapa estabelece critérios de destinação do leite fora dos padrões

PORTARIA Nº 392, DE 9 DE SETEMBRO DE 2021   Estabelece os critérios de destinação do le...

Veja mais
Empresa não deve indenizar por oferecer descontos apenas a novos clientes

Não há vedação legal para que fornecedores de serviços ofereçam descontos apen...

Veja mais
Justiça do Trabalho é incompetente para execução das contribuições sociais destinadas a terceiros

A 9ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT/RJ), ao julgar um agravo de petiç&...

Veja mais
Corte Especial reafirma possibilidade de uso do agravo de instrumento contra decisão sobre competência

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu embargos de divergência e reafirmou o entend...

Veja mais
Partidos questionam MP sobre remoção de conteúdo das redes sociais

Seis legendas buscam no STF a suspensão dos efeitos da norma assinada pelo chefe do Executivo federal.   O...

Veja mais
Consumo das famílias cresce 4,84% em julho, diz ABRAS

Cebola, batata e arroz foram os produtos com maiores quedas no período   O consumo das famílias bra...

Veja mais
Lei que prorroga tributos municipais na epidemia é constitucional, diz TJ-SP

Inexiste reserva de iniciativa de projetos de lei versando sobre matéria tributária, a teor do dispos...

Veja mais