É reconhecido o direito da Anvisa restringir ou proibir a venda do álcool líquido e a participação das entidades, como a Proteste, na ação.
Acordão do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, publicado em primeiro de agosto, reconhece o direito da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) restringir ou proibir a comercialização do álcool líquido, em todas as suas formas, até o consumidor final. Com a decisão da Quarta Turma Suplementar do TRF-1ª Região, por unanimidade, volta a valer a Resolução RDC Nº 46/2002, que foi suspensa por ação da Associação Brasileira dos Produtores e Envasadores de Álcool (Abraspea).
Numa vitória da mobilização da Frente Nacional de Combate aos Acidentes com Álcool, o relator do processo, Juiz federal Márcio Barbosa Maia, julgou legítimas as postulações da PROTESTE Associação de Consumidores, Criança Segura, Associação Médica Brasileira (AMB) MB e Associação Paulista de Medicina (APM) de intervirem no processo na condição de amicus curiae e, no mérito, dando provimento à Apelação da Anvisa, para dar plena eficácia e exequibilidade à Resolução RDC Nº 46/2002.
Diante dos riscos de queimaduras decorrentes do uso inadequado do álcool para a limpeza doméstica as entidades se mobilizam há mais de seis anos para que voltasse a restrição da venda de álcool líquido. A PROTESTE realizou teste comparativo que comprovou o perigo tanto do álcool líquido como do gel.
A ação da Abraspea pedindo a suspensão e ineficácia da RDC 46/2002 foi distribuída em 09/09/2002 e a sentença de 1ª grau, publicada em 17/10/2006, julgou procedente o pedido da entidade. Foi determinado que a Anvisa se abstivesse de restringir ou proibir a comercialização do álcool líquido, em todas as suas formas, até o consumidor final. A Agência recorreu e agora sua apelação foi julgada procedente.
Na sentença o Juiz federal Márcio Barbosa Maia desta que "o costume generalizado dos brasileiros utilizarem álcool como principal desinfetante não pode ter o condão de tornar ilegítimo o exercício do poder de política da Anvisa em prol da diminuição do número de acidentes causados em função da utilização de tal produto altamente inflamável.
A sentença destaca que todas as estatísticas apresentadas nos autos apontam um percentual de acidentes com o álcool líquido, cujas vítimas, em sua maior parte, são as crianças, em que pesem as distorções dos números apresentados diante dos diferentes critérios, métodos e amostras utilizados nos estudos estatísticos. "Sem embargo, não se pode ignorar que o fácil acesso a um inflamável dos mais comburentes que existem no mercado para o meio doméstico em um país que ainda números alarmantes quanto ao grau de instrução de sua enorme população é um fator que amplia o número de acidentes, o que se revela um dado extremamente preocupante e que implica em vultosos gastos para o já tão desgastado Sistema Único de Saúde do país".
Disciplinar a venda do álcool pouparia milhares de pessoas, entre elas as crianças, que anualmente tornam-se vítimas de queimaduras com riscos de morte ou comprometimento a integridade física e psicológica. Além da atuação da Anvisa para restringir a venda do produto, as entidades da Frente também se mobilizam pela sensibilização do Congresso Nacional para que seja votado logo o projeto de lei 692/2007que restringe a comercialização do álcool.
Em campanha permanente tem se procurado mostrar à sociedade os perigos do álcool e a necessidade de substituí-lo por outros produtos tanto na limpeza doméstica como no acendimento de churrasqueiras. Também é pedida a criação de um cadastro nacional com registros de casos de queimaduras por álcool.
A Associação dos Fabricantes e Envasadores de Álcool (Abraspea) fez um forte lobby junto às comissões por onde o projeto já tramitou e continua, para que seja rejeitado o projeto original, o PL 692/07 de controle e fiscalização sanitária do álcool etílico hidratado e do anidro.
Fonte: proteste.com.br (01.08.12)
Segue abaixo a íntegra do Acórdão:
Numeração Única: 283808220024013400
APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO 2002.34.00.028442-6/DF
Processo na Origem: 200234000284426
RELATOR (A) : JUIZ FEDERAL MÁRCIO BARBOSA MAIA
APELANTE : AGENCIA NACIONAL DE VIGILANCIA SANITARIA - ANVISA
PROCURADOR : ADRIANA MAIA VENTURINI
APELADA : ASSOCIACAO BRASILEIRA DE PRODUTORES ENVASADORES DE ALCOOL E SEUS EMPLEMENTOS- ABRASPEA
ADVOGADO : RODRIGO OTAVIO BARBOSA DE ALENCASTRO E OUTROS (AS)
REMETENTE : JUIZO FEDERAL DA 3A VARA - DF
EMENTA
CONSTITUCIONAL. DIREITOS HUMANOS. ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RESTRIÇÕES IMPOSTAS PELA ANVISA QUANTO À PRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE ÁLCOOL ETÍLICO SOB A FORMA LÍQUIDA. CF/88, ARTIGOS 196 E 197. LEI 9.782/99, ARTIGOS 6º E 7º, IV. RESOLUÇÃO RDC Nº 46/2002 DA AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. ADMISSIBILIDADE DE INTERVENÇÃO NA CONDIÇÃO DE AMICUS CURIAE DA PRO TESTE - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DEFESA DO CONSUMIDOR, DA ORGANIZAÇÃO NÃO GOVERNAMENTAL CRIANÇA SEGURA, DA ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA E DA ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE MEDICINA. A LEGITIMIDADE DA FIGURA DO AMICUS CURIAE EM QUALQUER TRIBUNAL DECORRE DA NECESSIDADE DE SE CONFERIR UM MAIOR CARÁTER DEMOCRÁTICO-PARTICIPATIVO NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DAS DECISÕES DO PODER JUDICIÁRIO, PRINCIPALMENTE NAS CAUSAS DE ABRANGÊNCIA E RELEVÂNCIA NACIONAL COMO SUCEDE NAS QUESTÕES VINCULADAS À SAÚDE PÚBLICA E À VIGILÂNCIA SANITÁRIA. COMPATIBILIDADE DA TEMÁTICA COM A NATUREZA DAS INSTITUIÇÕES QUE POSTULARAM A INTERVENÇÃO COMO AMIGAS DA CORTE. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RAZOABILIDADE DA RESTRIÇÃO NORMATIVA IMPOSTA PELA RESOLUÇÃO RDC Nº 46/2002 DA ANVISA. NO CASO CONCRETO, NÃO FICOU DEMONSTRADO QUE A SOLUÇÃO ADOTADA NO CONTEXTO DO PODER DISCRICIONÁRIO EM MATÉRIA TÉCNICO-CIENTÍFICA, SOB A ÓTICA DO SENSO COMUM, TENHA SIDO DESPROPORCIONAL. A RESOLUÇÃO RDC Nº 46/2002 DA ANVISA TAMBÉM ATENDE A APELOS DE DIREITOS HUMANOS, INSTITUIÇÃO DE SIGNIFICAÇÃO PECULIAR. APELAÇÃO E REMESSA OFICIAL PROVIDAS.
1. Em temas de alcance e de relevância nacional tal como ocorre na presente causa que versa sobre a restrição da produção e a comercialização de álcool etílico sob a forma líquida com vistas a atender, em tese, ao interesse público por intermédio da diminuição de riscos de acidentes, afiguram-se legítimas as postulações da Pro Teste - Associação Brasileira de Defesa do Consumidor, da ONG Criança Segura, da Associação Médica Brasileira e da Associação Paulista de Medicina no sentido de intervirem no presente processo na condição de amicus curiae, máxime quando a temática abordada na lide está abrangida pelas missões precípuas de tais instituições. A figura do amicus curiae é uma forma insofismável de se conferir um maior caráter democrático-participativo na construção das decisões judiciais por intermédio de instituições ou entidades representativas de interesses vinculados ao processo que podem fornecer ao órgão julgador, de forma legítima, maiores subsídios técnicos, informativos ou oriundos da expertise decorrente de um efetivo vivenciar a realidade inerente às questões normatizadas em ordem a viabilizar uma decisão dialética, fundamentada e abrangente de suas diversas perspectivas e complexidades. Em que pese a circunstância de tal modalidade de participação no processo está prevista, sob a ótica do direito infraconstitucional positivo, apenas nos processos de controle de constitucionalidade de competência do Supremo Tribunal Federal, reputo que o amicus curiae é um desdobramento das garantias constitucionais do processo e que constitui uma forma ampla de intervenção de terceiros interessados nos efeitos da lide no plano da realidade histórico-cultural e uma ferramenta que fornece maior grau de credibilidade à função jurisdicional do Estado. Tanto é verdade que o projeto do novo Código de Processo Civil universaliza a sua utilização a depender da relevância da matéria ou da repercussão social da lide. Não vislumbro nessa proposição a instauração de um direito novo, mas um mero reconhecimento legislativo das garantias constitucionais de um processo jurisdicional democrático, aberto e participativo.
2. É imperioso analisar a possibilidade de a ANVISA, por ato normativo derivado - Resolução RDC Nº 46/2002 -, estabelecer proibições e restrições que repercutam na esfera de direitos das pessoas jurídicas e físicas sujeitas à sua atuação administrativa. Partindo-se da Constituição Federal de 1988, estabelecem os artigos 196 e 197 da CF/88: "Art. 196 A Saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação." "Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, pessoa física ou jurídica de direito privado." Em matéria de intervenção indireta no domínio econômico, como sucede no presente caso concreto, também se afigura relevante transcrever o art. 174 da CF/88: "Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado."
À sua vez, A Lei 9.782/99 assim prescreve em seus artigos 6º e 7º, IV, da Lei 9.782/99: "Art. 6º. A Agência terá por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por intermédio de controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e séricos submetidos à vigilância sanitária". À sua vez, o inciso IV do art. 7º preceitua que compete à ANVISA "estabelecer normas e padrões sobre limites de contaminantes, resíduos tóxicos, desinfetantes, metais pesados e outros que envolvam risco à saúde". Assim, sob o ponto de vista formal, não há dúvidas que a Resolução RDC nº 46/2002 está devidamente respaldada na Constituição Federal de 1988 e na Lei 9.782/99. Não impressiona a circunstância de tramitar no Congresso Nacional o PL nº 692, de 2007, que contempla, praticamente, todo o conteúdo da Resolução RDC nº 46/2002, pois nada impede que o legislador possa encampar atos administrativos normativos sob o manto de lei formal. A eventual não aprovação legislativa do mencionado Projeto de Lei não tem o condão de tornar ilegal, sob o ponto de vista formal, a Resolução RDC nº 46/2002. Por fim, urge invocar a doutrina de Celso Antônio e Geraldo Ataliba quanto à possibilidade de o Estado, a partir de enunciados abertos contidos na lei, dispor de maior liberdade de regulamentar (no caso regular) matérias de caráter técnicocientífico:
"Sirvam de exemplo - para referir hipóteses lembradas por Geraldo Ataliba - regulamentos que caracterizam certas drogas como prejudiciais à saúde ou medicamentos potencialmente perigosos; os que a bem da salubridade pública, delimitam o teor admissível de certos componentes em tais ou quais produtos" (grifei) (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 21ªed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 344).
3. Assim, o ponto nodal da presente controvérsia reside no exame da razoabilidade, ou não, das proibições e restrições contidas na Resolução RDC nº 46/2002, porquanto foi editada no contexto do exercício do poder de polícia da ANVISA em matérias de sua competência institucional.
E uma das condições de validade do poder de polícia, segundo doutrina uníssona dos administrativistas, é o atendimento ao critério da proporcionalidade "entre a restrição imposta pela Administração e o benefício social que se tem em vista". (Hely Lopes Meirelles. Direito Administrativo Brasileiro. 36ª edição. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 144).
4. As principais restrições e proibições contidas na Resolução RDC nº 46/2002 são as seguintes: 1) o álcool etílico comercializado com graduações acima de 54ºGL (cinqüenta e quatro graus Gay Lussac) à temperatura de 20ºC (vinte graus Celsius) deverá ser comercializado
unicamente em solução coloidal na forma de gel desnaturados= e no volume máximo de 500g (quinhentos gramas) em embalagens resistentes ao impacto; 2) os produtos formulados à base do álcool etílico hidratado comercializados com graduações abaixo ou igual a 54ºGL (cinquenta e quatro graus Gay Lussac) à temperatura de 20ºC (vinte graus Celsius) deverão conter desnaturante de forma a impedir seu uso indevido; 3) o álcool etílico industrial e o álcool destinado a testes laboratoriais e à investigação científica, hidratado ou anidro, quando comercializado em volume menor ou igual a 200L (duzentos litros) deverá conter tampa com lacre de inviolabilidade e, no rótulo, além das frases constantes do Anexo I deverão constar nas advertências gerais a seguinte instrução: "PERIGO: PRODUTO EXCLUSIVAMENTE DE USO INSTITUCIONAL - PROIBIDA A VENDA DIRETA AO PÚBLICO". 4) o álcool puro ou diluído somente poderá ser comercializado nos locais de dispensação, nos termos da Lei 5991 de 17 de dezembro de 1973, quando a finalidade de uso não se enquadrar nas condições técnicas de desnaturamento ou forma de gel, nos termos desta Resolução, até o volume máximo de 50ml (cinqüenta mililitros).
5) Delineadas as proibições e restrições regulatórias, cabe analisar se elas configuram medidas ajustadas ao interesse público primário no sentido de se revelarem soluções menos gravosas com vistas a afastar risco iminente à saúde pública. As disposições ora impugnadas são de índole eminentemente discricionárias. Hely Lopes Meirelles desdobra o mérito administrativo intimamente vinculado ao poder discricionário em dois sentidos: 1) político-administrativo: quando a Administração por razões de conveniência e oportunidade, nos limites da lei, adota a solução que mais se afina ao interesse público; b) técnico-científico: quando a Administração, dotada de experts em entidades ou órgãos dotados de competência que exige conhecimentos científicos, adota solução técnica para atender ao interesse público, como acontece com o controle contábil, patrimonial, financeiro a cargo dos Tribunais de Contas ou com a edição de normas de caráter técnico-científico em matéria de regulação administrativa, como acontece com os setores de telecomunicações, energia elétrica, petróleo, etc. Maria Sylvia Zanella Di Pietro ensina que o princípio da razoabilidade tem aplicabilidade nos atos discricionários para
daí se inferir que a valoração subjetiva tem que ser feito em consonância com aquilo que, para o senso comum, seria aceitável perante a norma jurídica (in Direito Administrativo, 14ª edição. São Paulo: Atlas 2002, p. 210).
6. Nessa ordem de considerações doutrinárias, constata-se que o conteúdo do ato impugnado é de natureza discricionária e de cunho técnico-científico, o que não impede, mas restringe o controle jurisdicional a aspectos formais de legalidade, incluindo-se, em tal expressão jurídica, a análise do princípio da razoabilidade. E o exame da razoabilidade deve ser aferido "em consonância com aquilo que, para o senso comum, seria aceitável perante a lei", conforme lição doutrinária de Maria Sylvia Zanella Di Pietro acima invocada. Convém assinalar que a percepção do senso comum acerca da solução adotada pela norma não se confunde com o seu eventual apoio e concordância. Senso comum expressa um critério objetivo e desprovido de expertise ou de conhecimentos técnicos profundos para a análise social do bom senso de uma solução adotada pelo Estado para a realização do interesse público.
7. No tocante ao exame da razoabilidade no contexto do mérito técnico-científico da Resolução RDC Nº 46/2002, reputo relevante partir da premissa de que, como consta do expediente EM nº 00083/GM/MS da Subchefia de Assuntos Parlamentares dirigido ao Excelentíssimo Presidente da República "O álcool líquido é classificado como um inflamável. Os combustíveis como a gasolina e o óleo diesel requerem manuseio, equipamentos e instalações específicos, assim como o próprio álcool carburante. Os combustíveis não podem ser comprados em pequenos volumes e só podem ser adquiridos nos postos distribuidores. Porém, o álcool líquido, que possui elevado risco, podia ser comercializado em supermercados, mercadinhos e outros, até a adoção da RDC-46/2002, para o público em geral, inclusive crianças". Importa, então, fazer uma relevante indagação: a disponibilidade de comercialização de álcool líquido em supermercados, que pode alcançar a altíssima concentração de 93,7 GL, está em consonância com aquilo que, para o senso comum, seria aceitável perante a lei? Em outras palavras, existem outros desinfetantes à disposição do consumidor, com o mesmo grau de eficácia do álcool líquido e suscetível de causar menos danos à saúde pública? A resposta, pública e notoriamente, é afirmativa. O costume generalizado dos brasileiros utilizarem álcool como principal desinfetante não pode ter o condão de tornar ilegítimo o exercício do poder de política da ANVISA em prol da diminuição do número de acidentes causados em função da utilização de tal produto altamente inflamável. Ora, todas as estatísticas apresentadas nos autos apontam um percentual de acidentes com o álcool líquido, cujas vítimas, em sua maior parte, são as crianças, em que pesem as distorções dos números apresentados diante dos diferentes critérios, métodos e amostras utilizados nos estudos estatísticos. Sem embargo, não se pode ignorar que o fácil acesso a um inflamável dos mais comburentes que existem no mercado para o meio doméstico em um país que ainda números alarmantes quanto ao grau de instrução de sua enorme população é um fator que amplia o número de acidentes, o que se revela um dado extremamente preocupante e que implica em vultosos gastos para o já tão desgastado Sistema Único de Saúde do país.
8. Segundo dados disponíveis no sítio virtual do Ministério da Saúde, somente em 2009 293 crianças de 0 a 14 anos morreram e 19.476 foram hospitalizadas vítimas de queimaduras. Os custos estão entre os maiores por internação no SUS, mais de R$ 17 milhões foram gastos no ano em questão. Segundo dados de 2011 do DATASUS/Ministério da Saúde, 2.374 crianças foram hospitalizadas vítimas de queimaduras por exposição ao fogo, fumaça e chamas. Desse total, 30% estavam ligados a queimaduras com substâncias inflamáveis, o que inclui o álcool - cerca de 2 crianças hospitalizadas a cada dia. Nos hospitais brasileiros de referência, o acidente também é observado (dados de 2011). Neste caso, não importa que as queimaduras ocorram com maior incidência por outros meios, como, por exemplo, líquidos superaquecidos. O que realmente importa é que o álcool sob a forma líquida é responsável por um número significativo de acidentes domésticos.
9. De outro lado, reputo inteiramente sofismáticos os argumentos que são alinhavados em sentido contrário, além de uma carga de valoração predominantemente calcada em critérios puramente econômicos. Um argumento recorrente é no sentido de que, se a ANVISA está legitimada a proibir o álcool líquido no âmbito doméstico então, por ilação lógica, agência estaria legitimada a proibir também todos os produtos que, por mau uso, venham a causar risco à saúde, figurando entre eles os fogos de artifício, os isqueiros, os revólveres, os automóveis, as bebidas alcoólicas, situação que, para os oponentes da Resolução RDC 46/2002, configuraria um absurdo. Em primeiro lugar, a maioria dos itens arrolados sofrem inúmeras restrições dos órgãos públicos, tais como as bebidas alcoólicas, os automóveis e os revólveres.
Ademais, se determinado produto perigoso não está devidamente regulado sob os princípios da vigilância sanitária, tal circunstância não retira a legitimidade daqueles produtos manifestamente perigosos que foram objeto de restrições e proibições a fim de se preservar o interesse público. Outros argumentos utilizados contra as restrições na resolução da ANVISA estão consignados no voto contrário da deputada relatora do PL nº 692/2007, cujo conteúdo encampa as restrições e proibições contidos na Resolução RDC nº 46/2002 da ANVISA, nestes termos: "É pueril acreditar que a proibição da venda de álcool líquido evitaria seu consumo pelas donas de casa, churrasqueiros de fim de semana, manicures, cabeleireiros etc, que poderão facilmente adquiri-las em milhares de postos de abastecimento de combustíveis. A injuridicidade da norma é ainda mais gritante do ponto de vista prático, na medida em que a propalada proibição estimulará o comércio clandestino por parte dos vendedores, inclusive ambulantes (talvez até contratados por comerciantes inescrupulosos), com redução de arrecadação por parte do Governo. Ganharia fôlego, o informal." Com a devida vênia, a prevalecer tais argumentos, então o Estado também deveria liberar todas as drogas, visto que os usuários têm acesso aos psicotrópicos ilegais, também de forma relativamente facilitada, apesar da proibição. Obviamente, toda vez que o Estado proíbe ou restringe a utilização de um dado produto ou bem sempre aparecerá um mercado paralelo e informal; por isso é que existem os órgãos de fiscalização, prevenção e repressão. O sofisma de tais argumentos reside na circunstância de que a proibição do álcool sob a forma líquida de alta concentração no comércio em geral vai inibir a sua aquisição no âmbito domiciliar, ainda que possam existir meios de burlar a norma. Isso é incontestável. Isso é o que acontece na maioria dos países do mundo, que proíbem a comercialização generalizada de álcool líquido.
10. De outro lado, a Resolução RDC Nº 46/2002 da ANVISA ainda permitiu a alternativa de produção de álcool de alta concentração na forma de gel, na medida em que o próprio expediente EM nº 00083/GM/MS da Subchefia de Assuntos Parlamentares do Ministério da Saúde admite que "O uso do álcool líquido pela sociedade brasileira tem um aspecto cultural bastante considerável. A população credita a ele um alto poder de desinfecção e limpeza em geral. Do ponto de vista técnico, este produto é eficaz como desinfetante na concentração entre 68% a 72% (peso/peso) e como solvente em vários tipos de sujidades. Assim, existem outros produtos do ponto de vista prático e eficaz para atender a essas necessidades. O álcool líquido , por seu 'consagrado uso', é visto como uma 'solução excelente' para essas aplicações, o que de fato não é verdadeiro". De qualquer sorte, a forma gel para altas concentrações, ainda que não tenha a mesma versatilidade da forma líquida, atende ao seu perfil de desinfetante eficaz e, por outro lado, diminui consideravelmente o risco de acidentes. De tal sorte que o interesse público primário merece primazia em face de interesses mercadológicos e que não refletem a preocupação com o bem comum.
11. Desse modo, quanto à questão dos impactos econômicos suscetíveis de ocorrer aos empreendimentos produtores e envasadores de álcool resultantes da restrição da produção e comercialização do mencionado produto sob a forma líquida em altas concentrações, entendo que tal questão não pode servir de fundamento para uma decisão de cunho exclusivamente voltado para a diminuição de riscos de acidentes e, por conseguinte, de salvaguarda da saúde pública. De mais a mais, qualquer que seja a decisão sempre ocorrerão os impactos econômicos, porquanto se é verdade que a disponibilidade facilitada de produtos altamente inflamáveis são suscetíveis de causar um maior número de acidentes, também é certo, conforme visto anteriormente, que altos investimentos financeiros deverão ser revertidos para a política pública de saúde já tão sucateada em termos de estrutura humana, material e econômica.
12. Em outra linha de fundamentação, segundo dados levantados pela ONU por intermédio da Resolução 37/52, existe uma relação direta entre o número de deficientes de um país e o grau de desenvolvimento humano e educacional de sua população. Até o ano de 1982 existiam 500 milhões de deficientes no mundo e uma parcela de 350 milhões de pessoas deficientes vivem em "zonas que não dispõem de serviços necessários para ajudá-las a superar as sumas limitações. Uma grande parcela das pessoas deficientes está exposta a barreiras físicas, culturais e sociais que constituem obstáculos à sua vida, mesmo quando dispõem de ajuda para a sua reabilitação.". Dentre os fatores responsáveis pelo aumento crescente de deficientes consta a "elevada porcentagem de analfabetismo e falta de informação em matéria de serviços sociais, bem como de medidas sanitárias e educacionais" e "O uso indevido de medicamentos, o emprego indevido de certas substâncias terapêuticas e o uso ilícito de drogas e estimulantes (grifei). Afigura-se relevante ainda destacar deste documento a seguinte constatação: "O efeito conjunto desses fatores faz com que a proporção de pessoas deficientes seja mais elevada nas camadas mais carentes da sociedade. Por esta razão, o número de famílias carentes atingidas pelo problema aumenta continuamente em termos absolutos. Os efeitos dessas tendências constituem sérios obstáculos para o processo de desenvolvimento."
13. Veja-se que, neste sentido, todas as estatísticas apontadas nos autos têm como maiores vítimas de queimaduras as crianças carentes, o que corrobora o acerto da análise da ONU. Em tal contexto, a temática guarda íntima relação com os direitos humanos, o que justifica a
participação de entidades defensoras de tais direitos como amicus curiae. Os direitos humanos têm colorido e significação peculiares e muitos coincidem, sob o ponto de vista formal, com os direitos e garantias individuais previstos no art. 5º da Constituição Federal de 1988. A mais específica característica dos direitos humanos reside no contexto onde sua aplicabilidade é reivindicada, via de regra, em estruturas sociais excluídas juridicamente dos bens e garantias fundamentais imprescindíveis ao exercício da cidadania, tais como favelas, rincões onde se praticam trabalho escravo, presídios, etc. Assim, em inúmeras passagens da Constituição Federal de 1988, quando o seu texto se reporta a direitos humanos está adotando um conceito vinculado à exclusão jurídico-social, como sói acontecer com a previsão de intervenção federal na hipótese do art. 34, VII, b, que erige os "direitos da pessoa humana" ao status magno de princípio constitucional sensível. Outro exemplo é a previsão trazida pela EC 45/2004 relativa ao deslocamento de competência para a Justiça Federal de causas relativas a direitos humanos.
Ora, todos os órgãos do Poder Judiciário processam e julgam causas em que se discute a violação dos direitos ínsitos no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, mas se for identificado um local onde há um foco de completa ou preocupante exclusão jurídico-social, a
critério do Procurador-Geral da República e por decisão do Superior Tribunal de Justiça, a competência para julgar e processar a causa pode ser deslocada para a Justiça Federal, na forma do § 5º do artigo 109 da CF/88 introduzido pela EC nº 45/2004.
14. A campanha contra a comercialização de álcool doméstico sob a forma líquida, além das quatro instituições que figuram como amicus curiae no presente processo, recebe o apoio de inúmeras outras instituições, muitas de âmbito nacional, de direitos humanos, de médicos, de bombeiros, de ONGs que defendem os interesses de crianças, destacando-se as seguintes pessoas jurídicas: Aliança pela Infância; Associação Brasileira de Cirurgia Pediátrica - CIPE; Avante; Corpo de Bombeiros do Estado de São Paulo; CRIANÇA SEGURA Safe Kids Brasil; Federação Nacional das APAES; Fórum Nacional Pela Primeira Infância; Fundação Maria Cecília Souto Vidigal; Instituto Zero a Seis; Rede Nacional da Primeira Infância; Sociedade Brasileira de Pediatria; Sociedade Brasileira de Queimadura.
15. Se é certo, de um lado, que o Poder Judiciário deve pautar suas decisões com base em critérios eminentemente jurídicos, ainda que contrarie interesses de inúmeros setores da sociedade, também é verdade, por outro lado, que não pode ignorar, por completo, em questões de relevância nacional, a manifestação de instituições que têm interesses legítimos em cooperar na construção da decisão jurisdicional, o que, aliás, justifica a instituição jurídico-democrática do amicus curiae. Segundo legado do eminente jurista Peter Häberle "Qualquer intérprete é orientado pela teoria e pela práxis. Todavia, essa práxis não é, essencialmente, conformada pelos intérpretes oficiais da Constituição. A vinculação judicial à lei e a independência pessoal e funcional dos juízes não podem escamotear o fato de que o juiz interpreta a Constituição na esfera pública e na realidade (...) seria errôneo reconhecer as influências, as expectativas, as obrigações sociais a que estão submetidos os juízes apenas sob o aspecto de uma ameaça a sua independência. Essas influências contêm uma parte e legitimação e evitam o livre arbítrio da interpretação judicial." (in Hermenêutica Constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e 'procedimental' da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, Porto Alegre, 1997, tradução de Gilmar Ferreira Mendes, pp. 31/32).
16. Precedentes do TRF da 1ª Região quanto à legalidade da RESOLUÇÃO RDC Nº 46/2002 DA ANVISA.
17. Provimento da apelação da ANVISA e à remessa oficial, no sentido de julgar improcedente o pedido inicial e, em conseqüência, conferir plena eficácia e exeqüibilidade à Resolução RDC Nº 46/2002 com a inversão do ônus da sucumbência.
ACÓRDÃO
Decide a Quarta Turma Suplementar do TRF-1ª Região, por unanimidade, dar provimento à apelação.
Brasília-DF, 17 de julho de 2012.
Juiz Federal MÁRCIO BARBOSA MAIA
Relator Convocado
Fonte: Tribunal Regional Federal da 1ª Região (e-DJF1- 01.08.12)