Na primeira metade do século 20, os códigos ainda eram uma espécie de bíblia imprescindível de todo o conjunto das normas vigentes. Cada código regulava, em princípio, todo ou quase todo segmento do direito envolvido nas práticas da vida.
A tradição da força da lei codificada encontrou bom apoio no Código Civil francês de 1804. A redação, orientada por Napoleão Bonaparte, foi no sentido de que fosse escrito com tal clareza que nenhum cidadão deixasse de compreendê-lo.
Referido como "Code Napoleon", em sua esteira servem de exemplo codificações civis da Alemanha e da Suíça. Depois se espalharam, aí incluído nosso Código Civil de 1916.
Os tempos mudaram. Impôs-se o ajuste da lei a um universo mutante. A grande massa do direito foi dividida em partes cada vez menores.
O tipo compacto dos códigos foi superado, aos poucos, por leis específicas, uma para cada alternativa inovadora da concentração urbana, da industrialização e dos inventos que mudaram a vida e a família.
O exemplo mais atual desse resumo está em nosso Código Civil, que começou a vigorar em 11 de janeiro de 2003. A concentração do interesse predominante dos juristas nas emendas da norma codificada marcou o último decênio.
Em breve repasse da parte geral, contei 25 artigos e parágrafos emendados ou substituídos até o art. 232. Daí até o art. 2046, foram 45 alterações na parte especial. Total: 70 mudanças. Sete por ano, em média.
Além do Código, há, no direito civil brasileiro, mais de quarenta tipos de leis envolvidas.
É o caso --entre outros exemplos-- das questões de família, da criança e adolescente e do idoso. Sem falar na união estável ou no casamento entre parceiros do mesmo sexo.
Ou seja: apesar da atualização do Código e de sua qualidade, é enorme o conjunto dos direitos estranhos à regra codificada. Como isso é possível? O cidadão comum tem dificuldade em encontrar resposta para seus problemas. Ou até mesmo para entendê-los.
Uma crítica é válida, pela evidência da disparidade jurídica entre situações encontradas na França do século 19, comparadas com as situações de hoje, no Brasil.
Haverá modo qualificado de superar a confusão? Ela é gerada pelas mudanças da sociedade heterogênea de nosso tempo, com os progressos da eletrônica, do transporte aéreo, da energia elétrica, do sistema bancário e da comunicação instantânea mundial.
Pensando a questão em termos de direito, a resposta é difícil. A curto prazo, continuaremos navegando pela confusão encontrada no campo das múltiplas alternativas e das etapas no rumo do domínio completo de alterações extremas nos padrões da vida.
Lembremos que no hemisfério sul do planeta Terra, a densidade de ocupação territorial é muito mais baixa que no hemisfério norte.
Lá como cá, porém, os códigos fundamentais, próprios do passado do direito, já entraram no estágio de substituição de seus articulados específicos para o dos grandes princípios e fundamentos como parâmetros gerais da vida em grupo.
Até que esse caminho seja percorrido, continuaremos sofrendo com a confusão. Anote, porém: falamos só do direito civil. Quando ajustarmos a grande massa das leis gerais ao novo perfil do progresso, teremos compreendido quanto o primeiro passo foi precioso.
Walter Ceneviva é advogado e ex-professor de direito civil da PUC-SP. Assina a coluna Letras Jurídicas, publicada em "Cotidiano" há quase 30 anos. Trata, com cuidado técnico, mas em linguagem acessível, de assuntos de interesse para a área do direito. Escreve aos sábados na versão impressa de "Cotidiano".
Fonte: Folha de São Paulo (02.03.2013)