O governo federal – com o objetivo de obter receitas extras para minorar as graves consequências advindas da verdadeira depressão econômica que assola a economia brasileira – instituiu (pela publicação da Lei nº 13.254/16 posteriormente regulamentada pela Instrução Normativa SRF nº 1.627/16) o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados incorretamente, remetidos, mantidos no exterior ou repatriados por residentes ou domiciliados no país.
A compreensão global do precitado regime abrange (em apertadíssima síntese) o somatório dos seguintes fatos: I. apresentação formal até o dia 31/10/16 (por pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no Brasil entendida como beneficiária do RERCT) para a Receita Federal de uma declaração voluntária denominada Declaração de Regularização Cambial e Tributária/Dercat contendo a descrição pormenorizada dos recursos, bens e direitos de qualquer natureza de que seja titular o aludido beneficiário em 31/12/14 a serem regularizados, com o respectivo valor em real; II. realização do pagamento de um tributo (denominado pela referida lei como "imposto de renda na modalidade ganho de capital") e de uma multa punitiva de valor idêntico ao mencionado tributo; e III. consequente extinção – a depender do estágio em que se encontra determinada persecução penal – da punibilidade dos crimes expressamente arrolados no parágrafo 1º do art. 5º da Lei nº 13.254/16.
Não vislumbro uma ilegalidade em sentido amplo pela utilização da extinção da punibilidade de crimes entendida como fator motivacional/chamariz para o adimplemento de tributos não pagos de maneira tempestiva. Tal técnica legislativa, muito embora extremamente criticável por deixar latente que o interesse principal do legislador reside no aumento da arrecadação em detrimento da punição exemplar passível de aplicação no âmbito do direito penal tributário, não se trata de nenhuma inovação legislativa instituída pela Lei nº 13.254/16.
A análise a ser agora empreendida consiste na verificação da real natureza jurídica do tributo exigido no âmbito do RERCT (tributo este, conforme mencionado dantes, denominado "imposto de renda na modalidade ganho de capital"). Verificação esta que será realizada pela análise comparativa da "base de cálculo" utilizada pela legislação tributária em geral para as hipóteses de ganho de capital com a "base de cálculo" adotada pelo art. 6º da Lei nº 13.254/16.
A "base de cálculo" adotada pela legislação tributária pátria correlacionada ao Imposto de Renda na modalidade ganho de capital (a teor do que prescrevem, por exemplo, o art. 17 da Lei nº 9.249/95 e o parágrafo 1º do art. 25 da Lei nº. 9.430/96) corrobora duas noções fundamentais: i. necessidade (em relação a um específico bem) da obtenção do valor de alienação e do respectivo custo de aquisição/valor contábil; e ii. incidência do Imposto de Renda na modalidade ganho de capital quando constatada uma diferença positiva entre tais grandezas.
Já a "base de cálculo" adotada pelo art. 6º da Lei nº 13.254/16 não possui qualquer correlação com um verdadeiro "Imposto de Renda na modalidade ganho de capital", na medida em que desconsidera as noções acima explicitadas. Tal "base de cálculo" (por corresponder simplesmente ao valor total/de mercado em real de um ativo objeto de regularização) consagra, em verdade, um tributo instituído pela União incidente sobre o patrimônio existente no exterior de titularidade de pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no Brasil não declarado previamente de maneira correta por seus titulares junto ao Fisco brasileiro.
Faz-se necessário, após a identificação do tributo sob análise como sendo um tributo sobre o patrimônio com as características supra, verificar a compatibilidade (ou não) de tal tributo com a Constituição Federal. Concluo, em razão de todo o exposto, que o indigitado tributo não é compatível com os preceitos constitucionais de regência (com a consequente inconstitucionalidade da própria Lei nº 13.254) na medida em que: i. não foi instituído por lei complementar (em afronta, portanto, ao prescrito no Inc. I do art. 154 da CF/88); e ii. não se consubstancia em um imposto extraordinário tal como estatuído no Inc. II do mesmo art. 154 da CF/88 (o qual prescinde de Lei Complementar e que pode ser instituído mesmo quando extrapolada a competência tributária da União) pela não constatação da respectiva causa – iminência de guerra externa ou guerra externa em curso.
Marcelo Fróes Del Fiorentino é mestre e doutor em direito econômico, financeiro e tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo (TIT-SP) e advogado em São Paulo na área tributária
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Por Marcelo Fróes Del Fiorentino
Fonte: Valor Econômico (19.04.2016)