Os efeitos de decisão em ação civil pública não devem ter limites territoriais. Caso contrário, haverá restrição ao acesso à justiça e violação do princípio da igualdade. Com esse entendimento, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, com o voto-vista do ministro Gilmar Mendes, declarou, nesta quinta-feira (8/4), a inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985).
Seis ministros acompanharam o voto do relator, Alexandre de Moraes, para anular o dispositivo. Ficaram vencidos os ministros Nunes Marques e Marco Aurélio. Os ministros Luís Roberto Barroso (suspeição) e Dias Toffoli (impedimento) não participaram do julgamento.
O artigo 16, alterado pela Lei 9.494/1997, tem a seguinte redação: "A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova".
O julgamento havia sido interrompido em 4 de março. Em voto-vista, Gilmar Mendes seguiu o relator, Alexandre de Moraes, para declarar a inconstitucionalidade do artigo 16. Segundo ele, é necessário que as decisões em ações civis públicas tenham efeitos mais amplos, de forma a impedir decisões conflitantes em lugares diferentes.
Voto do relator
O relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, afirmou na sessão de 4 de março que, a partir da Lei da Ação Popular (Lei 4.717/1965), começou um processo de construção legislativa e jurisprudencial, intensificado pela Constituição de 1988, para garantir maior efetividade ao sistema protetivo de direitos difusos e coletivos.
Segundo o ministro, a alteração de 1997 na redação do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública ocorreu na contramão dos avanços na proteção de direitos metaindividuais. A alteração "teve grave defeito de técnica legislativa", avaliou Alexandre. Isso porque confundiu os efeitos da abrangência e territorialidade da decisão com a imutabilidade e indiscutibilidade da coisa julgada.
"O juiz é ou não é competente para decidir uma questão? Se sim, a partir da decisão e da coisa julgada, os efeitos e a eficácia da decisão não se confundem com a limitação territorial. Os efeitos têm a ver com os limites da lide. Não se pode confundir limitação territorial de competência com os efeitos", apontou.
Uma vez fixada a competência de um caso, a decisão do juiz não pode ter seus efeitos limitados territorialmente, avaliou o relator. O artigo 16, sustentou, exige a propositura de ações em todos os territórios de pessoas lesadas, o que contraria o sistema brasileiro. Com isso, contraria os princípios da igualdade e da eficiência da prestação jurisdicional, opinou o magistrado. Nesse cenário, declarou, as pessoas que moram em lugares com acesso mais restrito à justiça ficam privadas de ter seus direitos assegurados.
Dessa maneira, Alexandre de Moraes votou por declarar a inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, com redação dada pela Lei 9.494/1997, e o consequente restabelecimento do texto original do dispositivo, que é o seguinte: "A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova".
Esse é o primeiro item da tese proposta pelo ministro. O segundo estabelece que, "em se tratando de ação civil pública de efeitos nacionais ou regionais, a competência deve observar o artigo 93, II, do Código de Defesa do Consumidor". O dispositivo determina que, em casos de ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos, ressalvada a competência da Justiça Federal, é competente para a causa a justiça local na capital do estado ou do Distrito Federal, aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência concorrente.
Por fim, o terceiro tópico da tese apresentada diz que, "ajuizadas múltiplas ações, firma-se a prevenção de juízo competente que primeiro conhecer de uma delas para o julgamento de todas as ações conexas".
O processo
Com isso, a maioria do STF votou para negar o recurso extraordinário. Na origem, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) ajuizou ação coletiva contra os principais bancos do país para pedir a revisão de contratos de financiamento habitacional firmados por seus associados.
O juízo de primeiro grau determinou a suspensão da eficácia das cláusulas contratuais que autorizavam os bancos a executar extrajudicialmente as garantias hipotecárias dos contratos.
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região aceitou recurso dos bancos e afastou a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. O colegiado afastou a aplicação do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública, por entender que o direito reconhecido na causa não pode ficar restrito ao âmbito regional, pela amplitude dos interesses.
A decisão foi mantida pelo Superior Tribunal de Justiça, que entendeu ser indevido limitar a eficácia de decisões em ações civis públicas coletivas ao território da competência do órgão judicante.
No STF, os bancos queriam reverter o entendimento. Eles alegaram que o STJ violou a cláusula de reserva de Plenário ao afastar a incidência da norma e não seguir o rito previsto para a declaração incidental de inconstitucionalidade, que exige o julgamento pelo Órgão Especial.
Repercussão
A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) afirmou que as decisão do Supremo vai além dos bancos e afeta a prestação de serviços da saúde privada.
Segundo a entidade, como os planos de saúde funcionam baseados em compartilhamento de riscos, a decisão do STF impacta a precificação e, consequentemente, o valor cobrado dos beneficiários em todo o Brasil.
"Por isso, a federação entende que a modulação dos efeitos da decisão é medida necessária para garantir a segurança jurídica de todos os setores que poderão ser atingidos. A FenaSaúde espera que o entendimento do Supremo se aplique apenas àquelas matérias que venham a ser judicializadas a partir da efetiva consolidação da tese. Sua incidência de forma irrestrita e retroativa tem o potencial de exponencializar a insegurança jurídica a níveis ainda inestimáveis, justamente em um momento em que o país mais precisa de estabilidade e segurança para atrair investimentos", disse a instituição.
Walter Moura, advogado do Idec em Brasília, discorda. "A conclusão do STF, neste julgamento, sobre os efeitos da sentença coletiva apenas consolida um entendimento já conhecido e de décadas do Judiciário brasileiro. Não há razões para modular efeitos de qualquer sentença de Ação Civil Pública, dado que os grandes provedores de bens e serviços (bancos, saúde privada, telefonia, entre outros) que têm alguma responsabilidade jurídica, sempre provisionaram recursos para repor perdas aos seus consumidores."
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RE 1.101.937
Sérgio Rodas – Correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
Fonte: Revista Consultor Jurídico – 08/04/2021