Cálculos da ABRAS apontam que o desperdício médio do setor supera os R$ 11 bilhões por ano
Não é de hoje que o combate à fome é um dos maiores desafios do planeta. Portanto, jogar alimento no lixo torna-se infame, quando milhões de pessoas não têm o que comer no mundo.
Com base nesta premissa, surge uma discussão na cadeia produtiva do setor de alimentos com o objetivo de esticar o prazo de validade dos produtos, sobretudo no caso de não-perecíveis.
A ABRAS (Associação Brasileira de Supermercados) levantou o assunto no ano passado e deu continuidade no 2º Fórum da Cadeia Nacional de Abastecimento, que aconteceu neste mês.
A Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos) também se manifestou a favor.
Nos cálculos da ABRAS, a taxa de desperdício média do setor é da ordem de 1,8%, atingindo R$ 11 bilhões por ano, considerando o faturamento anual do setor, de R$ 611 bilhões.
Fora os perecíveis que somam 36% e são descartados por prazo de validade vencido, mais da metade deste valor (64%) refere-se a produtos descartados pela validade ultrapassada, mas que se enquadram no “Best Before”.
“Com mais tempo para a venda, aumenta o prazo para a venda comercial e solidária e as doações humanitárias”, diz Rodrigo Segurado, vice-presidente de Ativos Setoriais da ABRAS.
‘DE PREFERÊNCIA ANTES DE’
O conceito do ‘best before’ (de preferência antes de), como é chamado o movimento de estender prazos de validade, já é praticado nos EUA, União Europeia, Reino Unido e Canadá.
Nesses países, alguns produtos possuem duas datas de validade. A primeira indica que até aquele dia o alimento tem todas as características asseguradas para o consumo.
A segunda data aponta que o alimento está seguro para o consumo, mesmo que algumas das características, garantidas até a primeira data de validade, não sejam mais as mesmas.
No caso de um pacote de bolacha, por exemplo, crocância, aroma, textura e sabor devem estar assegurados até a data de validade.
No conceito ‘best before’, pode ser que algumas dessas características, como crocância e aroma, foram perdidas, o que não significa que o produto esteja impróprio para o consumo.
“O cliente sabe e decide se o produto está impróprio ou não para o consumo”, diz Segurado.
De acordo com ele, as indústrias, geralmente, colocam uma margem de segurança ao definir a data de validade de seus produtos, podendo chegar a 30 dias.
NO EXTERIOR
Supermercados da União Europeia, de acordo com o vice-presidente da Abras, conseguiram reduzir o desperdício em pelo menos 10% com o uso do ‘best before’.
E o interessante para o consumidor, afirma ele, é que a adoção do conceito permite maior acesso a produtos, até porque os preços chegam a cair pela metade.
Em 2016, a WeFood, uma loja com sede em Copenhague, na Dinamarca, foi criada para vender produtos descartados ou próximos do vencimento a preços até 50% menores.
A maioria dos produtos vendidos na loja, administrada por uma organização sem fins lucrativos, possui erros nos rótulos, embalagens danificadas ou está prestes a vencer.
Exemplos como este têm tudo para se replicar no Brasil, dizem supermercadistas, sobretudo num período de pressão inflacionária e quando 33,1 milhões de pessoas passam fome no país.
“Sou o maior incentivador do conceito ‘best before’, que está de acordo com os programas para acabar com a fome no mundo”, diz Eder Ismael Motin, controler da rede Condor.
Dados da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) mostram que cerca de 30% do que se produz de alimentos no mundo são desperdiçados.
Supermercados brasileiros chegam a registrar taxas acima de 2% de perdas de produtos. Na Europa e nos Estados Unidos, afirma Motin, são geralmente abaixo de 2%.
Faz alguma diferença, de acordo com supermercadistas, tomar leite de uma embalagem que venceu às 23h59 de um dia do que tomar às 0h01 do dia seguinte? A resposta é não.
“O consumo de um produto vai muito pelo lado sensorial. O iogurte só estraga quando estufa. A indústria já deixa um período maior de shelf life do produto após o vencimento”, diz Motin.
DESAFIOS
Reduzir as perdas de produtos em razão de prazo de validade vencido é um dos grandes desafios dos supermercadistas, de acordo com Hélio Freddi Filho, diretor da rede Hirota.
Na média, diz ele, a taxa da rede gira ao redor de 2%, mas, em algumas categorias, chega a 10%, como é o caso das seções de padaria, açougue, peixaria e de frutas, legumes e verduras.
“Tem alguns produtos que no dia seguinte após a produção já são descartados. Alguns produtos como o pão francês, a rede faz doação”, diz.
A rede Hirota, assim como outros supermercados, costumam fazer promoção de produtos que, por algum motivo, estão próximos do vencimento e não foram comercializados.
Alguns supermercados em São Paulo até se especializaram neste negócio. Lojas on-line também anunciam produtos próximos ao vencimento com descontos de 50%.
“O ideal é que os supermercados não precisem fazer este tipo de ação, pois, quando isso ocorre, revela erro no processo de estoque”, diz Celso Kayo, gerente geral comercial do Hirota.
Neste momento de pressão inflacionária e vendas mais restritas, dizem os supermercadistas, fica ainda mais difícil controlar estoque de milhares de itens espalhados pelas lojas.
CRIME
A pergunta que se faz entre os empresários do setor é: colocar em prática o conceito de ‘best before’ no Brasil é simples, rápido, basta a cadeia produtiva querer? A resposta é não.
Primeiramente, existe uma lei de 1990 (número 8.137) que, em seu artigo 7º, classifica como crime vender, ter em depósito ou expor produtos impróprios para o consumo.
A pena prevista para este crime é de dois a cinco anos de prisão ou multa, relacionada diretamente ao faturamento da empresa, podendo chegar a R$ 12,8 milhões.
O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90) também cita em seu artigo 18, parágrafo 6º, que são impróprios para uso e consumo produtos com prazos de validade vencidos.
“Hoje, portanto, vender produto com prazo de validade vencido é crime e pode dar cadeia no Brasil”, afirma Guilherme Farid, diretor-executivo do Procon- SP.
Agora, isso não significa, diz ele, que o assunto não possa ser discutido. “E essa discussão deve começar e terminar no Congresso Nacional. É preciso mudar leis”, diz.
Vale lembrar que já há entendimento no STJ (Superior Tribunal de Justiça) que a perícia técnica é indispensável para verificar se um produto fora da validade é impróprio para o consumo.
Para Farid, a primeira discussão sobre o conceito ‘best before’ está relacionada com política pública para o país.
“O que se pretende com a mudança da lei, reduzir o desperdício de alimentos? E essa mudança vai beneficiar o consumidor? A questão do ‘best before’ engloba tudo isso.”
Hoje, a política pública implementada no Brasil não prevê a extensão da validade dos produtos, embora a discussão, para Farid, seja bem-intencionada.
Estudos técnicos precisam ser feitos para dar base às eventuais mudanças na legislação brasileira. “O debate precisa ser provocado.”
Em um cenário geral, diz ele, ninguém é favorável ao desperdício de alimentos e ninguém é contra a doações para quem precisa.
“Se uma nova política pública for capaz de garantir um alimento seguro e evitar o desperdício, ela é bem-vinda. Mas tudo tem de ser discutido. Não dá para decidir em uma canetada.”
De acordo com Farid, atualmente, cerca de 80% das autuações feitas no comércio em geral estão relacionadas com a venda de produtos fora do prazo de validade.
“Esta é uma infração recorrente”, afirma.
Para os empresários do setor, a multa deveria estar relacionada à venda do produto ou de uma categoria, e não incidir sobre o faturamento mensal da loja.
Fonte: Fátima Fernandes, Diário do Comércio