Preços baixos e oferta alta ajudaram a criar uma cultura da bebida no Brasil.
Mas medidas protecionistas podem acabar com a “tacinha” nossa de cada dia.
Nos últimos anos, tomar um bom vinho, no Brasil, deixou de ser um hábito restrito a um pequeno grupo de consumidores. “Nunca antes neste país”, como diria o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, bebeu-se tanto vinho quanto agora. Desde 2005, o consumo de vinhos finos passou de 59,4 milhões para 92,2 milhões de litros por ano, segundo a União Brasileira de Vitivinicultura (Uvibra), a entidade que reúne os produtores nacionais – um aumento de 55%, o dobro do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) no período.
Com a explosão do consumo, a oferta se diversificou. Em 2011, foram vendidos no Brasil vinhos procedentes de 30 países. As lojas especializadas se multiplicaram. Os supermercados, mesmo os mais populares, destinaram espaços exclusivos para a bebida. Nos restaurantes, pedir uma “tacinha” para acompanhar a refeição virou prática comum para um número cada vez maior de brasileiros. Uma espécie de cultura do vinho, praticamente inexistente até pouco tempo atrás, prosperou. Os cursos para profissionais e apreciadores pipocaram em todo o país. As adegas climatizadas tornaram-se um objeto do desejo. Em meio a essa febre do vinho, surgiu até a figura bizarra do “enochato”, uma espécie de caricatura do novo consumidor da bebida. O “enochato”, na ânsia de se passar por conhecedor, abusa de maneirismos que, nos países com forte tradição na área, como França e Itália, só se observam em sofisticadas sessões de degustação.
De repente, este novo Brasil que ama o vinho está em xeque. Como já aconteceu com as indústrias automobilística, naval e de brinquedos, o governo poderá adotar medidas protecionistas, para limitar a concorrência dos importados, em resposta a um pedido feito pelos grandes empresários do setor. Em vez de aproveitar a popularização do vinho no país da cerveja e da cachaça, eles defendem a imposição de “salvaguardas” para proteger a produção nacional. A justificativa é que o aumento recente do consumo se deu em cima dos importados, sem trazer benefícios para a indústria local.
Segundo dados do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin), principal interlocutor dos grandes fabricantes do Rio Grande do Sul, onde se concentram 90% da produção do país, os vinhos nacionais representavam 36,9% das vendas de vinhos finos. Hoje, representam apenas 21,2%, embora em valores absolutos a queda não tenha sido grande (leia o gráfico acima). “Queremos apenas garantir que o vinho nacional não desapareça do mercado”, diz Carlos Paviani, diretor executivo da Ibravin.
Os empresários gaúchos, apoiados pelo governador do Estado, Tarso Genro, do PT, e pela bancada gaúcha no Congresso Nacional, parecem contar também com a simpatia da presidente Dilma Rousseff. Ela prometeu levar adiante as reivindicações dos produtores durante a 29a Festa Nacional da Uva, realizada em Caixas do Sul, no interior gaúcho, em meados de fevereiro. “Estejam certos de que têm na presidenta uma parceira”, afirmou na ocasião.
Os grandes produtores defendem o estabelecimento de cotas de importação por país durante pelo menos cinco anos, além da elevação das alíquotas dos importados, dos atuais 27% para 55%. Até os vinhos do Chile, hoje beneficiados por um acordo bilateral, poderão ser penalizados. “Vamos voltar aos tempos do garrafão”, diz Mario Telles, vice-presidente da Associação Brasileira de Sommeliers.
Do jeito como o assunto está sendo tratado pelos produtores e pelo governo, parece que tanto faz beber um vinho daqui ou dali. Só que, no mundo dos vinhos, o conceito de “similar nacional” não é aplicável como em outros produtos. Cada região tem clima e solo diferentes. As uvas também têm características distintas, e cada safra é diferente da outra. “O vinho não é uma commodity”, diz Adilson Carvalhal Junior, dono da importadora Casa Flora e presidente da Associação Brasileira de Exportadores e Importadores de Alimentos e Bebidas (Abba). “A ideia de que, se o consumidor não encontrar o vinho que lhe interessa, vai tomar qualquer um não existe. O mundo do vinho vive da diversificação.”
Caso as medidas propostas pelas grandes vinícolas sejam aprovadas, haverá certamente uma redução na oferta de importados. Os preços dos vinhos estrangeiros subirão. Com a diminuição da concorrência, os produtores nacionais também terão margem para aumentar um pouco seus preços. No final, quem vai pagar a fatura, como sempre, será o consumidor, que terá de desembolsar mais para comprar o mesmo produto, se é que haverá oferta suficiente para atender à demanda. A saída será encher o carrinho no free shop, tanto aqui como lá fora, até o limite de US$ 500 per capita.
Em sua página no Facebook, a chef Roberta Sudbrack, dona de um restaurante que leva seu nome no Rio de Janeiro e ex-comandante da cozinha do Palácio da Alvorada no governo Fernando Henrique, publicou o nome das vinícolas envolvidas no lobby contra os importados, como Miolo, Aurora e Casa Valduga. Ela está fazendo campanha em defesa de um abaixo-assinado contra as salvaguardas, que já conta com milhares de assinaturas. Roberta também retirou da carta de seu restaurante os vinhos de produtores que apoiam a limitação das importações. “A equação é muito mais simples do que parece: acredito que, quanto mais acesso ao vinho o brasileiro tiver, mais interesse por ele terá. O resultado beneficiará a todos, principalmente ao vinho nacional”, diz ela.
Veículo: Revista Época