Na tentativa de intermediar uma série de interesses distintos de grandes cervejeiras do país e produtores artesanais, o Ministério da Agricultura deve lançar, no fim de outubro, a segunda consulta pública para regulamentação do mercado de cervejas. A primeira, encerrada no início deste ano, recebeu milhares de sugestões, mas as disputas em torno das mudanças dividem o setor produtivo.
No meio de todas as contribuições recebidas, duas recebem mais apoio dos fabricantes. A primeira, segundo fontes da iniciativa privada, é defendida nos bastidores pelas grandes empresas do setor, Ambev e Brasil Kirin. A proposta prevê o aumento de 45% para 50% na quantidade de cereais não maltados - como arroz e milho- usados na produção da cerveja. Arroz e milho são mais baratos que os maltados (lúpulo e cevada).
A segunda mudança, que é a inclusão de produtos de origem animal na cerveja - como chocolate (que contém leite) e mel (produzido por abelhas) - é defendida por pequenos fabricantes. Hoje, para ser classificada como cerveja, a bebida deve ser "obtida pela fermentação alcoólica do mosto cervejeiro oriundo do malte de cevada e água potável, por ação da levedura, com adição de lúpulo", conforme estabelece o decreto 6.871/2009.
É esse mesmo decreto que define que "parte do malte de cevada poderá ser substituído por adjuntos cervejeiros, cujo emprego não poderá ser superior a quarenta e cinco por cento em relação ao extrato primitivo". Para as empresas, o ideal é que seja permitido elevar esse índice para até 50% de outros carboidratos. Na prática, isso aumenta a margem das grandes empresas.
Apesar de não afetar diretamente seu modelo de negócios, os produtores artesanais propõem a segmentação da classificação da cerveja que produzem. A ideia é adotar um critério técnico que defina exatamente o que é uma cerveja artesanal. Esse critério seria um percentual mínimo de malte presente no produto.
A mudança pode baratear os custos e ajudar o setor a enfrentar a queda na venda de cervejas. Mesmo com o consumo sazonal, aumentando em meses de calor e se contraindo no inverno, as vendas em 2013 estão sendo afetadas pela inflação.
A Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe), que representa cerca de 40 empresas, disse que existe consenso na maioria dos pontos que integram o processo de revisão do padrão dos produtos de cervejarias. Procurada, a Ambev informou que não iria se pronunciar. A Associação Brasileira da Indústria da Cerveja (CervBrasil), que reúne Ambev, Brasil Kirin, Heineken e Petrópolis (ou 96% da produção nacional de cerveja) informou que é a favor da revisão do texto, em sintonia com a evolução do setor.
O Brasil é o terceiro maior mercado produtor de cerveja no mundo, atrás de China e Estados Unidos. Em 2012, foram fabricados 13,7 bilhões de litros de cerveja no país, de acordo com dados do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe). Esse volume supera em 422 milhões o resultado verificado no ano anterior.
A proibição do uso de produtos de origem animal é considerada uma "camisa de força" pelos produtores artesanais. A regra impede a "inovação" no setor e inviabiliza, por exemplo, a produção nacional de cervejas com chocolate, que hoje é proibida por conta da presença de leite na composição.
A Abrabe estima que existam cerca de 200 microcervejarias no país. Elas estão concentradas principalmente nas regiões Sul e Sudeste, que representam 0,15% do setor cervejeiro nacional. Segundo a associação, o setor demonstra tendência de crescimento e deve atingir 2% da fatia do mercado em dez anos.
"A questão da inclusão de produtos de origem animal é latente e as regras atuais estão ultrapassadas. Há uma necessidade de reconhecer a inovação e novos estilos de produção. Imagine que não poderíamos fazer carros flex, pois originalmente o automóvel só era movido a gasolina", diz o presidente da Associação Gaúcha das Pequenas e Microcervejarias (AGPM), Jorge Gitzler.
Apesar de parecer simples, a adição de produtos de origem animal precisa estar bem descrita na lei. Caso contrário, a bebida produzida não poderia se enquadrar na categoria atual de cervejas, ou seja, teria de ser encaixada na categoria de bebidas alcoólicas mistas. O Ministério da Agricultura diz que é possível alterar a legislação para a inclusão de substâncias não permitidas.
O diretor do departamento de inspeção de produtos de origem vegetal do Ministério da Agricultura, Ricardo Cavalcanti, disse que o decreto atual já trata de cervejas com vegetais de uma forma mais genérica. "A mesma tática poderia ser usada para os produtos de origem animal, sem precisar criar um parágrafo específico para cada tipo de ingrediente que viesse a surgir", observou o diretor.
Veículo: Valor Econômico