Boa carne brasileira, para o brasileiro

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Roberto Smeraldi

O aumento recente no consumo de carne bovina se deu nos setores que, por questão de preço, absorvem a maioria da carne de risco

Tolerar e manter um quádruplo padrão sanitário na carne --além de ser bizarro do ponto de vista legal e científico-- revela um cinismo e um preconceito social difíceis de conceber em pleno século 21.

Ao se tornar, recentemente, grande exportador de carne, o Brasil adotou para o segmento cuidados que visam proteger o consumidor de fora e respondem a critérios internacionais.

São cuidados ainda mais rigorosos do que aqueles usados pela inspeção federal (SIF), que, por sua vez, se aplica a menos de dois terços da carne consumida pelo brasileiro e garante certa segurança, embora inferior à do produto exportado.

Depois vem o resto, meramente carimbado com selos estaduais e municipais que, de acordo com pesquisa recente, nem sequer garantem, em cerca de 80% dos casos, que o animal tenha passado por um veterinário, de forma semelhante ao que ocorre no abate clandestino.

Nas últimas semanas, o consumidor brasileiro ficou chocado ao descobrir que ele não merece o mesmo respeito do consumidor global e ainda é vítima de uma paradoxal discriminação praticada por suas próprias autoridades, as que elege e para as quais paga impostos.

Cabe mencionar um agravante cruel. O expressivo aumento no consumo de carne bovina nos últimos anos veio de dois segmentos: o principal é o dos novos incluídos, que saem da pobreza, e o segundo é do "food service", que representa o conjunto do que se come fora de casa.

No primeiro caso, trata-se do consumidor mais vulnerável, menos informado e que mais se pauta apenas por preço: esse é o principal consumidor da carne não inspecionada. Orgulhoso de proporcionar para sua família um avanço, não sabe que está colocando em risco a saúde dos seus.

No segundo caso, é onde a carne já vem cozinhada e não se tem chance alguma, portanto, de checar até mesmo se ela traz um selo do SIF.

Dessa forma, o consumo aumenta exatamente nos dois segmentos com menor transparência e possibilidade de discernimento. Por questões de preço, são também os segmentos que absorvem a maioria da carne de risco.

O que vem com a carne não inspecionada não é apenas a potencial transmissão de doenças difusas, mas às quais é difícil atribui uma origem precisa.

Também chegam com mais facilidade substâncias proibidas usadas nos animais, assim como carnes oriundas de outros crimes e práticas danosas para a sociedade como um todo, tais como descarte de dejetos, poluição da água, desmatamento, emissão de gases estufa, trabalho degradante, evasão fiscal.

Isso porque a pressão do Ministério Público e da sociedade organizada começou a ter impacto razoável nas empresas principais, mas não chega até a grande maioria dos mais de 1.500 matadouros e frigoríficos que existem no país --fora os clandestinos.

O repúdio da sociedade à atual situação é uma oportunidade: ao exigirmos o fim imediato do quádruplo padrão e da omissão por parte de uma expressiva minoria de veterinários coniventes, teremos criado as condições para organizar a cadeia em cima dos três atributos-chave da boa carne: qualidade, sanidade e impacto socioambiental positivo.

Foi o que ocorreu com o café brasileiro na década passada, quando o fim das fraudes ao consumidor foi acompanhado pela articulação da cadeia, pela busca por excelência e pelo investimento em toda a cadeia de valor.

Chamo aqui os setores mais abertos da indústria, do varejo, dos produtores e da sociedade civil para construirmos parcerias ousadas e inovadoras, dispensando preconceitos, hipocrisia e demagogia.

O Brasil merece. O brasileiro, mais ainda.

ROBERTO SMERALDI, 53, jornalista, é diretor da Oscip Amigos da Terra - Amazônia Brasileira e autor do "Novo Manual de Negócios Sustentáveis" (Publifolha, 2009)



Veículo: Folha de S.Paulo


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