Da fazenda Santa Fé do Corixinho, a pouco mais de 200 quilômetros de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, 500 bois saíram para o abate no ano passado. Cerca de um terço desses animais, porém, teve um destino diferente. Isso porque eles foram criados num sistema orgânico de produção: livres de antibióticos, hormônios sintéticos, ração à base de grãos transgênicos e pastagens tratadas quimicamente — seja com adubos, seja com herbicidas — durante a maior parte da vida. Em seu cardápio só entraram pasto natural, grãos livres de transgenia e probióticos (bactérias benéficas à saúde dos animais).
No frigorífico, o abate desse gado é feito separadamente, sem nenhum contato com bois criados de maneira convencional. Nas prateleiras dos supermercados, por fim, um selo indica a origem da carne, que, além de orgânica, é sustentável — causou o mínimo impacto possível à natureza. O preço dos cortes chega a ser de 10% a 30% mais alto do que a média de outras carnes consideradas nobres.
Para conseguir adequar os procedimentos à produção de carne orgânica, o pecuarista e agrônomo Eduardo Cruzetta, de 43 anos, proprietário da Fazenda Santa Fé do Corixinho, levou cerca de um ano e meio. Antes de se preparar para atender aos critérios específicos da produção orgânica, Cruzetta já era partidário de práticas de manejo sustentável. Desde que assumiu a gestão da fazenda da família em 2009, ele dividiu a área em piquetes, ou seja, os cercados que segmentam o pasto, para concentrar o rebanho em um deles por vez, no lugar de deixar os animais livres para circular pela propriedade.
A técnica consiste em permitir que os bois pastem em um dos cercados e, antes que o capim acabe, sejam transferidos para o cercado ao lado, sucessivamente. Quando o boi retorna ao primeiro piquete, o capim já cresceu. Isso evita a degradação da pastagem por exaustão e, consequentemente, a derrubada de novas áreas de mata. Cruzetta também decidiu se dedicar ao cuidado das pastagens nativas — são dezenas de tipos —, próprias do bioma Pantanal. Algumas espécies, pouco produtivas, estão sendo gradativamente substituídas pela braquiária, gramínea africana largamente utilizada no Brasil. Outras, fertilizadas naturalmente pelo regime de alagamento próprio do Pantanal, renovam-se ano a ano e, assim, tornam-se alimento de melhor qualidade para o gado. “Essas áreas mantiveram a mesma capacidade de suporte do gado ao longo de dez anos”, diz Cruzetta. “Sem esse tipo de manejo, já estariam hoje em estágio de degradação.”
Desde 2016, o fazendeiro é membro da Associação Brasileira dos Produtores Orgânicos, a ABPO, que reúne hoje 15 pecuaristas da região do Pantanal e um rebanho de 80 000 animais. A associação, criada em 2001 com o apoio da ONG ambientalista WWF, tem o objetivo de dar uma escala comercial ao tipo de pecuária que, historicamente, se pratica ali. Por causa da dinâmica hídrica da região, caracterizada pela alternância entre secas e cheias, o uso extensivo do solo não é viável o ano inteiro. Isso torna o manejo sustentável das pastagens nativas uma prática recorrente entre fazendeiros.
Mesmo depois de quase três séculos de tradição pecuária, 83% da planície pantaneira ainda está preservada. “O modelo que aproveita melhor a paisagem natural, sem grandes intervenções, é bom para o meio ambiente e também é um diferencial de mercado para o produtor perante consumidores mais exigentes”, afirma Julio Cesar Sampaio, coordenador do programa Cerrado-Pantanal, da WWF Brasil, que acompanha de perto o dia a dia das fazendas associadas e ajuda a medir o balanço entre produtividade e conservação. A premissa do consumidor consciente é atendida — e tem gerado negócios. Desde 2015, o mercado de orgânicos cresce 30% ao ano no mundo. As mudanças implementadas por gigantes do setor alimentício, como a Nestlé, que tem incentivado a produção de leite orgânico no Brasil, reforçam a curva de crescimento desse tipo de produto.
Mas não é toda grande empresa que enxerga um potencial de expansão nesse nicho de mercado. Até 2010, a Associação dos Produtores Orgânicos do Pantanal era fornecedora do frigorífico JBS. Na época, a empresa pagava a cada produtor um prêmio de 10% sobre o valor da arroba do boi e vendia esse produto a diversos varejistas, sem muito critério de segmentação de marca. À medida que a companhia se tornava um gigante de commodities, porém, a disposição para pagar mais pela carne orgânica foi diminuindo — e os produtores precisaram, de novo, ir ao mercado para fazer valer seu diferencial.
A nova aposta veio da Korin, empresa que há mais de duas décadas atua no nicho de alimentação natural e orgânica, com foco em frangos criados fora de gaiolas, um negócio que cresceu 537% desde 2007. A empreitada não se deu livre de críticas, já que a Korin se posiciona publicamente pela redução do consumo de carne vermelha, por causa do impacto ambiental da pecuária. “Vimos que era possível uma produção orgânica, de baixo impacto ambiental e que promovesse a conservação de um bioma importante do país”, afirma Reginaldo Morikawa, diretor-superintendente da Korin. A empresa, ligada à igreja messiânica, tem como premissa o respeito aos animais abatidos e à preservação do meio ambiente.
Foi preciso garantir também que o elo intermediário dessa cadeia produtiva reconhecesse as oportunidades — e os desafios — de atender a esse nicho de mercado. Na busca por frigoríficos parceiros, a Korin chegou ao Naturafrig, que reposicionou a própria marca e mudou o nome (antes, chamava-se Nave Carne). Em 2015, eram apenas dez animais abatidos por mês. Hoje, abate cerca de 350 cabeças de gado no mesmo período. Apesar do crescimento, a representatividade ainda é baixa: 5% da produção do Naturafrig vai para a Korin. A projeção é que essa fatia chegue a 15% até o fim deste ano, na esteira do crescimento da oferta de bois orgânicos pelos produtores. A expectativa vem do incentivo dado recentemente pelo governo de Mato Grosso do Sul, que decidiu diminuir em até 67% o imposto sobre circulação de mercadoria que incide no abate orgânico. A desoneração funciona como uma espécie de pagamento por um serviço ambiental: o produtor que promove a conservação do bioma é de alguma forma remunerado por isso. “Fomentar a carne sustentável e a carne orgânica do Pantanal é usar o potencial de conservação que temos para melhorar a condição econômica do pecuarista”, afirma Jaime Verruck, secretário de Meio Ambiente, Desenvolvimento, Produção e Agricultura Familiar de Mato Grosso do Sul.
A ideia é que se estabeleça um círculo virtuoso: mais preservação, mais apelo ecológico para os produtos, maior demanda e maior oferta. Por ora, a Korin está praticamente sozinha nesse mercado no Brasil. Algumas marcas também compram de pecuaristas orgânicos do Pantanal sul-mato-grossense, como a paulista Wessel, mas boa parte da demanda ainda vem da Korin. O negócio da carne bovina orgânica da empresa já representa 8% do faturamento, atrás das linhas de cortes de frango e de ovos, campeãs de receita, e já à frente das categorias de peixes e cereais. Em todo o país, cerca de 1 000 toneladas de carne bovina orgânica são comercializadas por ano — 60% mais do que o volume registrado em 2015, quando a demanda caiu sob impacto da crise econômica.
PRODUTIVIDADE
Todos os pecuaristas que hoje fazem parte da Associação de Produtores Orgânicos do Pantanal adotam um protocolo de produção de carne sustentável — uma espécie de cartilha de boas práticas que, se seguida à risca, garante que o produto chegue certificado às prateleiras. “A certificação é a forma máxima de comunicação com esse consumidor de nicho, que, além de preço, quer informação de garantia de origem”, afirma Leonardo Leite, pecuarista e presidente da ABPO. Entre as obrigações do produtor estão a manutenção de áreas de preservação permanente previstas em lei, a alimentação do gado com pastagens nativas do Pantanal e a garantia do bem-estar dos animais durante todo o processo produtivo.
A adoção das diretrizes já rendeu ganhos de produtividade a boa parte dos pecuaristas. Numa fazenda convencional pantaneira, a taxa de lotação gira em torno de três animais a cada 10 hectares. O devido cuidado com as pastagens nativas do bioma, movimentando o gado e impedindo a compactação do solo, aumentou a capacidade de acomodação do pasto: agora, cinco animais ocupam o mesmo espaço de antes, sem prejuízo do ritmo de alimentação.
Como a região pantaneira é uma tradicional produtora de bezerros, a produtividade das vacas também é um indicador importante. Hoje, para cada 100 vacas em idade reprodutiva, nascem até 80 bezerros por ano. Tradicionalmente, o número atingia no máximo 65. A despeito dessas vantagens, o produtor que decide não só pelo manejo sustentável mas também pela produção orgânica precisa se preparar para um decréscimo temporário de rentabilidade — que pode durar até três anos — enquanto ajusta o sistema de produção aos novos métodos. As mudanças têm valido a pena.
As experiências da região mostram que, seis anos após a adequação da produção, a produtividade pode crescer cerca de 30%. Para Cruzetta, da Fazenda Santa Fé do Corixinho, oito anos renderam um aumento de 50% na produção de carne, considerando a tonelada de boi vivo vendida. Hoje, ele consegue concluir todo o processo de cria, recria e engorda dos bois na própria fazenda, diferentemente da maioria dos pares, que vendem bezerros que serão preparados para o abate em outros estados, majoritariamente no Cerrado Central, área que inclui Mato Grosso e Goiás.
Dar escala a um modelo que oferece projeções de ganhos sem diminuir as áreas ainda intocadas é o cerne da estratégia que se tenta fixar no Pantanal sul-mato-grossense. E não por acaso. O Pantanal é a maior área úmida contínua do mundo e chega a drenar 50 vezes mais carbono do que florestas, uma característica estratégica quando se pensa no agravamento do aquecimento global. A região também tem um papel importante de condicionamento climático no país devido a seu regime de chuvas. Ainda assim, suas áreas mais altas têm sido empurradas pela produção de soja, que já ocupa 200.000 hectares impróprios em Mato Grosso do Sul — áreas em que o grão não poderia ter avançado, por causa das regras do Código Florestal.
Especialistas alertam, porém, que não se deve olhar para o Pantanal de maneira isolada, já que sua relação de interdependência com o bioma vizinho, o Cerrado, é fundamental para qualquer política de conservação. “Pensar em políticas para o Pantanal sem levar o Cerrado em consideração é como pensar na copa das árvores sem suas raízes”, diz Júlio Cesar Sampaio, do WWF. Quase 100% da água que abastece as bacias do Pantanal nasce no Cerrado, que já perdeu mais da metade da cobertura original para a agropecuária.
A vantagem desse tipo de sistema produtivo não é apenas ambiental — nem restrita ao nicho de mercado que vem se consolidando em torno dos produtores pantaneiros. O Brasil, hoje o maior exportador de carne bovina do mundo, ainda está aquém de seu potencial no segmento de carnes premium — entre elas as oriundas de produção orgânica. De acordo com um relatório da consultoria inglesa Future Markets Insights, o Brasil, ao lado da Argentina, é um dos países latino-americanos com maior potencial nesse mercado por causa de suas pastagens nativas permanentes, que podem ser manejadas sem uso de químicos.
Atualmente, o mercado global de carne bovina orgânica é avaliado em 8 bilhões de dólares e está concentrado na Europa, no Canadá e nos Estados Unidos. A estimativa do mesmo relatório é que, até o final de 2027, esse mercado deverá dobrar de tamanho, passando de 16 bilhões de dólares. Se os pecuaristas brasileiros fizerem a lição de casa, buscando aliar o aumento da produção com a preservação ambiental, podem sonhar em conquistar um bom naco desse cobiçado mercado.
Fonte: Exame