A grande expansão da classe média no Brasil, com o acréscimo de mais de 30 milhões de pessoas no mundo do consumo regular nos últimos anos, impõe grandes desafios à outra ponta do processo, isto é, o varejo. Na disputa por espaço num mercado que movimenta hoje US$ 500 bilhões por ano, sendo já o 17.º maior do mundo, segundo a Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo federal, as empresas que servem a esses consumidores mostram deficiências que podem comprometê-las nessa verdadeira "corrida do ouro".
No primeiro semestre do ano, houve 861 mil queixas contra empresas nos Procons de todo o País, um número 9,23% maior do que em igual período de 2011, indica pesquisa do Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor. O porcentual é superior ao do aumento das vendas no varejo no mesmo período (7,6%), como mostram dados da Serasa Experian. Isso significa que o consumidor está mais consciente de seus direitos e também mais informado sobre onde buscar ajuda para que eles sejam respeitados. "Há uma mudança de comportamento do consumidor", constatou o diretor executivo do Procon-SP, Paulo Góes.
Está claro que a ampliação da massa de brasileiros com poder de compra encontrou um setor da economia despreparado. Os problemas aparecem tanto na incapacidade de entregar o que se vende nos prazos acertados e com a qualidade anunciada como na relação com o consumidor insatisfeito com o produto ou o serviço que adquiriu.
Essa situação tem levado as agências reguladoras e as entidades de defesa do consumidor a agirem com mais rigor nos últimos tempos. No ano passado, a Anac suspendeu a venda de passagens da TAM e da Webjet em razão de recorrentes atrasos e cancelamentos de voos. Em julho deste ano, a Anatel proibiu que operadoras de telefonia celular líderes em reclamações continuassem a vender seus produtos enquanto não resolvessem os problemas. Também no mês passado, a Agência Nacional de Saúde Suplementar suspendeu a venda de 268 planos de saúde de 37 operadoras. Essas empresas não respeitavam os prazos acordados para atendimento.
Ainda assim, o que se nota é que as agências decidiram agir somente depois que o consumidor já havia sido castigado por prestadores de serviço e varejistas. O consumo no Brasil não dispõe de uma efetiva proteção preventiva. Foi necessário que a situação da telefonia celular atingisse um nível próximo do indecente para que a Anatel enfim resolvesse fazer o que dela se espera, e mesmo assim não há nenhuma garantia de que esse saudável rigor venha a se manter no futuro. Afinal, a Anatel, para ficar somente neste exemplo, é uma agência que até aqui havia "punido" empresas com multas inofensivas (houve uma inferior a R$ 3) e que demorava anos para julgar as irregularidades.
Para superar esses deficientes mecanismos de defesa e a indiferença das empresas em relação a seus clientes, materializada no pesadelo chamado "Serviço de Atendimento ao Consumidor", os brasileiros que se sentem lesados estão recorrendo cada vez mais à internet, para expor seus problemas e constranger em larga escala os varejistas e prestadores de serviços, como mostrou reportagem do Estado (30/7). As redes sociais levam ao conhecimento de milhares de pessoas reclamações que antes ficavam restritas aos escaninhos de funcionários despreparados. Esse fenômeno está obrigando as grandes empresas a mudar sua estrutura de relação com os clientes, incluindo nela o monitoramento da internet para reduzir os danos à sua imagem.
Percebe-se, assim, que o perfil do consumidor brasileiro não está mudando só sob o aspecto quantitativo. Parece que ele está se cansando de ser um herói, que paga caro por produtos e serviços ruins ou inexistentes, e quer ser tratado agora simplesmente como cliente, isto é, aquele que "sempre tem razão". Cabe às empresas perceber essa transformação e preocupar-se em respeitar seus consumidores não apenas quando estão tentando vender-lhes suas mercadorias, mas principalmente depois que recebem seu dinheiro.
Veículo: O Estado de S.Paulo