Do café com leite ao vermute Fernet, passando pelo vinho malbec e pela erva-mate, o argentino é associado a várias bebidas antes da cerveja. Mas a fama de ecletismo disfarça a mudança no padrão do consumo nos últimos anos: segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), o consumo per capita de cerveja no país se multiplicou por sete entre 1963 e 2007, período em que a ingestão de vinho caiu 70%. Em termos proporcionais, a alta do consumo de cerveja foi superior à do Brasil, onde quadruplicou.
Na esteira do aumento massivo do consumo, os argentinos de classe média começam a descobrir a cerveja artesanal e tomam aulas com os brasileiros. Na última semana deste mês, vai ser realizado em Buenos Aires o "Beer Day", primeiro festival da cerveja artesanal, no bairro da Recoleta, com oito jurados e um palestrante brasileiro.
"No Brasil já existem cerca de 200 microcervejarias em atividade. Na Argentina, esse mercado está sendo criado agora. Eles são muito mais ousados que os brasileiros em termos de experimentação, mas não conseguem a padronização que caracteriza a produção brasileira. Aqui se faz o básico bem feito. Os argentinos não se preocupam por vezes com erros básicos, como a presença da substância diacetil, que torna a cerveja amanteigada e com baixa espuma na fermentação", diz o sommelier fluminense Gustavo Renha, um dos palestrantes no evento.
Renha é capaz de destacar, entretanto, marcas argentinas que não fazem feio em qualquer comparação internacional: a Cape Horn, da Terra do Fogo; a Gulmer e a La Logia são algumas citadas. O especialista também é elogioso com a principal marca das microcervejarias argentinas, a Antares, que já fez exportações para Curitiba e São Paulo nos últimos dois anos.
A Antares foge um pouco do padrão de cerveja artesanal pela escala de sua produção na fábrica em Mar del Plata, no litoral argentino: a sua planta industrial fabrica 100 mil litros por mês. "O volume da produção não é o único critério: entram outros fatores como o uso de ingredientes sem conservantes, a fidelidade às fórmulas artesanais e o modelo da comercialização", comentou um dos sócios da cervejaria, Pablo Rodríguez.
Cerca de 75% da produção da Antares, que estará presente no festival, é escoada pela rede de 14 cervejarias da marca, duas delas próprias e o resto de franqueadas, espalhadas por Buenos Aires, Córdoba, Rosario, Mendoza e Bariloche. "Estamos conseguindo crescer fazendo a venda direta ao consumidor. Não há como concorrer nos supermercados, já que as grandes produtoras de cerveja são globais e conseguem trazer para a Argentina marcas premium da Europa a um preço menor", disse Rodríguez.
Na Argentina, desde o início do governo da presidente Cristina Kirchner, existe um sistema cada vez mais protecionista do comércio que restringe importações. É aberta uma exceção, contudo, quando o grupo importador é também exportador, como é exatamente o caso da AB InBev, dona da marca Quilmes; ou da Femsa, que produz na Argentina a Heineken; ou a SAB Miller, produtora da Isenbeck. Por essas vias entram na Argentina cervejas como a italiana Moretti, a alemã Beck's e a belga Leffe, entre outras.
A Antares nasceu em 1998, quando Rodríguez e dois outros engenheiros químicos montaram o empreendimento, aproveitando as circunstâncias favoráveis para a importação de maquinários e ingredientes. A escala inicial era de 4 mil litros mensais. "O consumo cresce todos os anos e essa tendência permanece mesmo diante da situação econômica atual da Argentina. Mas a inflação alta no país impede pensar em mercados no exterior. Nosso produto acaba chegando caro demais ao Brasil", disse Rodríguez. A inflação oficial na Argentina é de 10% ao ano, mas o número do governo é desacreditado por todos os agentes econômicos do país. A variação real de preços é estimada em 25%.
A escala atingida pela Antares é uma notável exceção. "Estimamos que o consumo de cervejas artesanais na Argentina de fabricação nacional não passe de 0,2% do consumo total", comentou um dos organizadores do festival, Sergio Brickmann, que é distribuidor de bebidas.
No Brasil, segundo Gustavo Renha, não há estatística precisa, já que não se diferencia as artesanais brasileiras das importadas com o mesmo perfil, mas o consumo de cervejas diferenciadas está em torno de 5% do total.
Brickmann confirma a tendência argentina de experimentar sabores, como cervejas com aveia e mel. "Toda microcervejaria conta com pelo menos quatro tipos de cerveja, sendo que estão sempre presentes a stout e a india pale ale", afirmou, citando essas duas modalidades de cervejas escuras.
A india pale ale, mais conhecida como IPA, caracteriza-se pelo amargor do lúpulo. A stout mais consumida entre os apreciadores brasileiros de bebida estrangeira é a irlandesa Guinness.
Veículo: Valor Econômico