Sem vinho, camarão nem estratégia

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Em uma decisão que não resistiria a um sopro no tribunal de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC), o Ministério da Pesca vem barrando a importação de camarões da Argentina - para proteger os empregos do setor no Brasil, segundo confessaram candidamente funcionários do ministério ao repórter Tarso Velloso, do Valor. Nos próximos dias, o governo decide se decreta ou não outra medida de proteção a produtores brasileiros: o pedido de salvaguarda contra a importação de vinhos - que, se adotada, golpeará duramente as vendas do produto chileno ao Brasil. Legítimas ou não, decisões como essas são sintoma de uma grave doença na política comercial brasileira.

A doença tem várias causas, uma delas a flagrante perda de competitividade da mercadoria nacional em um mundo de estoques crescentes e disputa medonha por mercados consumidores. A patologia não merece, porém, o diagnóstico simplista de protecionismo, é algo maior e mais abrangente. Combina um quadro clínico de alta pressão pela integração de mercados com o raquitismo melancólico de parcelas do setor produtivo brasileiro e a elefantíase de certos setores exportadores (especialmente os de commodities e alguns segmentos turbinados por injeções anabolizantes do BNDES).

A necessidade de aumentar a escala da produção brasileira, para enfrentar concorrentes gigantescos como a China, faz parte de todas as receitas para aumento de competitividade do produto nacional. Seria natural que o Brasil buscasse, como já busca, ampliar seu mercado para os países vizinhos - e neles muitas indústrias brasileiras encontraram a porta de entrada para a globalização. Mas não existe comércio de uma só via, as barreiras a produtos dos países vizinhos e os crescentes superávits com alguns de nossos parceiros sul-americanos tornaram-se um obstáculo nas negociações comerciais com os países do continente.

Comércio não tem uma só via: barreira brasileira atrapalha

O setor agrícola é fonte da maior parte das pressões por maiores barreiras a importados dos países vizinhos. A banana do Equador (para quem, aliás, o Brasil é apenas 0,8% do mercado de exportações) encontra os mais variados argumentos de regulação sanitária para ter barrada sua compra por brasileiros, produtos cítricos argentinos são alvo de rígida fiscalização, que inviabiliza a venda ao Brasil até de frutas sem riscos sanitários, e o arroz uruguaio está sob ameaça de um imposto adicional de 9,25%, embutido na Medida Provisória 563, a ser sancionada pela presidente Dilma Rousseff - outra medida que, se aplicada, violará as normas da OMC e do Mercosul.

Agricultores brasileiros se queixam de que, no esforço de integração com os países do Mercosul, foram sacrificados, fragilizados em relação à forte concorrência vizinha, para abrir mercados e favorecer a indústria paulista. Têm certa razão. A verdade desagradável é que é muito difícil falar em ampliação de mercados e integração produtiva se o país continua a raciocinar como se devesse ser uma autarquia, onde tudo é produzido, não importam as condições de competitividade. E, como mostram a soja e o milho, nem todo o setor rural está em má situação.

O Brasil tem obstáculos à produção conhecidos, mas seria incorreto minimizar as barreiras competitivas enfrentadas também pelos países vizinhos, como na Argentina, onde produtores são sujeitos a impostos de exportação, intervenção arbitrária do Estado no sistema produtivo, dificuldade de acesso a financiamento e instabilidade macroeconômica.

Adaptação não é novidade no campo. Na gestação do Mercosul, os produtores de trigo mantinham um lobby frequente em Brasília, exigindo subsídios no país e barreiras ao produto mais competitivo do vizinho e pintando cenários de fim de mundo para o setor no Brasil. A abertura trazida pelo bloco esvaziou o lobby e eliminou custosos subsídios, obrigou produtores a se adaptarem: paranaenses investiram em qualidade, empresários subiram um degrau na escala produtiva investindo em moinhos, aumentou o plantio de milho.

Não acabaram os problemas no setor, nem se criou um modelo universal, mas se mostrou que mudanças nas condições de competitividade são administráveis. Hoje, o problema do setor é outro, o subsídio argentino à farinha de trigo, tema para outra coluna.

No governo Lula, as pressões dos setores agrícolas não encontraram muita receptividade. Testam agora a disposição de Dilma. Encontraram argumento e espaço com o protecionismo tosco da Argentina, imposto na base de licenças não automáticas e intervenção pessoal do ministro argentino Guillermo Moreno, com ameaças a importadores.

Discretamente, como reação à retenção de produtos brasileiros nas alfândegas, o Brasil passou a reter também mercadorias argentinas de regiões com forte peso eleitoral, como maçãs, uvas, peras, camarões e cebolas. O próprio Moreno levantou a bandeira branca, e, desde junho, Brasil e Argentina trocam telefonemas quase diários para administrar a passagem de mercadorias pelas fronteiras. Pouco a pouco, carne suína do Brasil, antes retida, ganha acesso ao mercado vizinho. As barreiras brasileiras também afrouxaram, mas nem tanto.

O modelo adotado com a Argentina responde à situação particular do país, sem financiamento externo, temeroso de uma fuga de capitais, obcecado com superávit nas contas de comércio. É também a manifestação mais evidente do dilema brasileiro no esforço de ampliação de mercados e integração produtiva na região. Não existe uma estratégia no Brasil para lidar com os setores perdedores - no país e nos vizinhos - e adaptá-los a uma eventual integração comercial digna do nome, tão necessária quanto distante.

Na falta dessa estratégia, o caminho para os microfones de onde as autoridades fazem declarações de amor à integração sul-americana estará sempre atravancado. Por sacos de arroz, garrafas de vinho, cestas de camarão, garrafas de leite...



Veículo: Valor Econômico


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