Em cenário de economia desaquecida, tão ou mais importante que vender mais é receber pelo que se comercializa. Redes varejistas, que já sofreram no fim do ano passado os reflexos do agravamento da crise financeira internacional sobre a economia brasileira e recuperaram o volume de vendas do período 'pré-crise', agora diversificam estratégias para reduzir ou manter o nível de inadimplência. Casas Bahia e Riachuelo reforçaram as apostas nas vendas com cartão de crédito, dividindo o risco de inadimplência com operadoras de cartão, além de reduzir parcelas e restringir o crédito aos consumidores nas vendas a prazo. O receio de perdas e de comprometimento do nível de consumo futuro continua grande, apesar da recente melhora nas vendas do comércio.
A Associação Comercial de São Paulo (ACSP) projeta para o varejo crescimento de 1 a 2 pontos percentuais acima do Produto Interno Bruto (PIB), não ultrapassando 3% - em 2008 o avanço foi de 9,1%. Mas estima também elevação da taxa de inadimplência para pessoas físicas no país dos atuais 8,3% para 12% a 13% no fim do ano. De acordo com dados do Banco Central, de setembro a março, a inadimplência de pessoas físicas passou de 7,3% para 8,3% e o maior índice está no grupo de pessoas que adquiriram bens exceto automóveis - para esse grupo, a taxa passou de 13,4% para 14,2%.
Conforme pesquisa do Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC) da ACSP, em abril, o número de inadimplentes cresceu 12%; em março, o aumento foi de 11%; em fevereiro, de 19%. Para o economista-chefe da ACSP, Marcel Solimeo, o que preocupa é a reincidência. Do total de inadimplentes, 31,6% quitaram dívidas até seis meses antes e voltaram a atrasar os pagamentos; no intervalo de 12 meses, a reincidência foi de 58,6%. De 30 mil inadimplentes com nome inscrito no SCPC, 90% estão devendo a empresas de varejo.
Apenas na cidade de São Paulo, os débitos em atraso somaram R$ 1,5 bilhão no mês passado, 47% mais que em abril de 2008. No Estado, o volume tem girado entre R$ 5 bilhões e R$ 6 bilhões ao mês. Solimeo avalia que, nas crises anteriores, a recuperação do varejo foi mais rápida porque as empresas ofereciam mais facilidades aos consumidores para quitar os débitos. "Após a crise de setembro, o nível de desemprego aumentou e gerou grande insegurança nos empresários, que passaram a oferecer condições aos consumidores bem menos favoráveis", diz ele.
Representantes do varejo confirmam o clima ainda de apreensão. Evento realizado na terça-feira em São Paulo sobre inadimplência teve procura muito maior que a esperada. Aproximadamente 250 pessoas lotaram o auditório e outras duas salas da ACSP usadas de forma improvisada para acomodar o público. No palco, os diretores de crédito e cobrança das Casas Bahia, Paulo Santos, e das Lojas Riachuelo, José Antonio Rodrigues, revelaram preocupações em relação ao quadro de inadimplência e de desaquecimento da renda. Na plateia, representantes de outras empresas acenavam com a cabeça ratificando a apreensão.
A Casas Bahia, que possui 550 lojas em 10 estados e 29 milhões de clientes cadastrados, foi favorecida nos últimos 30 dias pela redução do IPI para linha branca. As vendas de geladeiras, que representam em torno de 30% do seu faturamento, têm crescido de 10% a 15% desde abril. A melhora no segmento que apresentava o pior desempenho em vendas anima a rede, mas também preocupa, de acordo com Paulo Santos. O nível de inadimplência da rede tem se mantido, desde o início da crise, entre 9% e 10%, mas a empresa vê risco de piora com a deterioração da renda no país. "Existe um número grande de consumidores que ficaram inadimplentes pela primeira vez. E dentro desse grupo há uma boa parcela de pessoas que estão tomando crédito nas financeiras ou nos bancos para quitar outras dívidas e esse é um quadro bem preocupante", afirmou.
A inadimplência não foi o único problema. Conforme Santos, a Casas Bahia teve de enfrentar uma concorrência mais acirrada, tendo em vista que outras varejistas redirecionaram o foco para o público de baixa renda, que mantinha o mesmo patamar de consumo. Para garantir maior clientela e reduzir o risco de inadimplência com 'consumidores desconhecidos', a rede apostou mais nas vendas com cartão Casas Bahia (administrado pelo Bradesco) . "Neste momento, a maior preocupação do varejo é identificar quem são esses 'novos' consumidores e saber para quem conceder crédito", afirmou.
A concessão de crédito mais criteriosa também leva em consideração a economia de cada Estado, segundo Santos. Ele cita a Bahia, onde a empresa inaugurou quatro lojas em abril na capital e pretende abrir outras 32 unidades até o primeiro semestre de 2010. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de desemprego na região metropolitana de Salvador estava em 12,4% em abril, 3,9 pontos percentuais acima da média nacional. A renda média real domiciliar per capita na região, porém, cresceu 6,7%, acima da média do país (3,4%). A diferença deve-se ao número maior de trabalhadores que tem o reajuste condicionado ao salário mínimo. "É um mercado que tem uma economia informal mais forte que no Sudeste. As características regionais também têm que ser consideradas na concessão do crédito", afirmou Santos.
O economista da Fecomércio-RJ Christian Travassos observa que os Estados reagiram de maneira distinta à forte desaceleração econômica recente. Regiões onde a concentração de empresas exportadoras tem peso maior na economia também apresentaram impactos negativos mais expressivos no desempenho do varejo doméstico. Nas regiões onde o mercado doméstico tem peso preponderante na economia, os níveis de emprego e renda sustentaram um crescimento mais expressivo do comércio varejista. "Regiões mais dependentes da produção e da exportação de matérias-primas agrícolas e siderúrgicas e de bens de capital acabaram registrando nível maior de desemprego. Mesmo quando a renda média não caiu muito, o cenário ajudou a contrair as intenções de compra", afirma Travassos.
Para o economista, as diferenças regionais ajudam a explicar o desempenho mais favorável na região metropolitana do Rio do que em São Paulo, por exemplo. Os dois Estados registraram queda de 27% nas exportações acumuladas de janeiro a março, segundo dados da Secex. Na região metropolitana do Rio, contudo, a renda real subiu 7,3% em março, acima da média apurada em São Paulo (4,3%) e no Brasil (4,5%), conforme o IBGE. O Estado fluminense também registrou melhor desempenho em vendas (alta de 6,1% no trimestre, ante 5,6% em São Paulo e 3,8% na média nacional), na produção (queda de 11,4%, ante 15,1% em São Paulo e de 14,7% no país) e no desemprego (taxa de 6,9% em março, ante 10,5% em São Paulo).
Essa discrepância pode ser observada também entre Rio Grande do Sul e Minas Gerais. As exportações feitas pelo Rio Grande do Sul caíram 29,4% no primeiro trimestre e a renda real cresceu 2,5%, levando o comércio a encerrar com queda de 1,1%. Minas Gerais teve queda de 5,3% nas exportações e a renda, que tem peso maior na economia local, avançou 1%, garantindo expansão de 2,5% do comércio.
As diferenças regionais afetaram as redes varejistas. A Riachuelo, que possui 28 lojas no Nordeste de um total de 104 no país, foi a única entre as varejistas do ramo a registrar crescimento das vendas no primeiro trimestre em comparação com o mesmo intervalo de 2008, de 0,2%. A Renner, que tem maior concentração de lojas no Sul (32) do que no Nordeste (12), apresentou queda de 12% na receita no mesmo período. De acordo com o diretor de crédito e cobrança das Lojas Riachuelo, José Antonio Rodrigues, a renda sustentada foi decisiva para a estabilidade dos negócios. Recentemente, a rede decidiu elevar o número de parcelas nas vendas a prazo de dez para 14, tendo em vista os sinais de recuperação do mercado. Hoje em torno de 62% das vendas da rede são feitas com cartão da própria loja, 21% com cartão de outras bandeiras e o restante, à vista. "O consumidor está mais cauteloso e é preciso ter sensibilidade para recuperar os consumidores inadimplentes e manter o número de clientes neste momento."
Para o economista da Fecomércio-RJ, não há razões para preocupação exagerada, pois a inadimplência é maior no segmento de vendas de bens duráveis. "Não há sinais de que o pagamento de tributos e contas básicas como água e luz tenha sido altamente comprometido pela crise", diz Travassos.
Em abril, segundo levantamento da Fecomércio-RJ, a parcela da população da região metropolitana do Rio a apresentar sobra no orçamento aumentou de 29,5% para 35,1%. O índice de consumidores com intenção de comprar produtos duráveis e semi-duráveis no próximo semestre ficou em 39,8%, 11 pontos percentuais acima do patamar registrado em abril do ano passado, quando a economia ainda se encontrava bastante aquecida. O nível de inadimplência, segundo Travassos, cresceu pouco em 12 meses na região, passando de 15,9% para 16,5%. "Faz sentido manter a preocupação com o risco de inadimplência, mas esse é um fator que só se tornará realmente preocupante se o nível de desemprego crescer", diz.
Veículo: Valor Econômico