Sergio Lamucci, de São Paulo
A possibilidade de a economia brasileira encolher neste ano é grande, mas o país tem se saído melhor que vários outros emergentes no cenário da mais grave crise global desde os anos 30. Se não mostra a resistência de uma China, o Brasil ao menos exibe um desempenho mais consistente que o da Rússia, México, Turquia e alguns países do leste europeu. Com reservas internacionais na casa de US$ 200 bilhões, um déficit em conta corrente moderado, contas fiscais robustas e um sistema financeiro saudável, o Brasil tem conseguido aguentar razoavelmente bem o brusco solavanco da economia global.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta uma queda de 1,3% para o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro em 2009, resultado bem pior que a alta de 6,5% prevista para a China e de 4,5% para a Índia, mas muito superior aos tombos estimados para Rússia (-6%), Turquia (-5,1%), México (-3,7%), República Checa (-3,5%), Hungria (-3,3%), Bulgária (-2%) e Venezuela (-2,2%).
Hoje, será conhecido o resultado do PIB brasileiro no primeiro trimestre de 2008. Na comparação com o trimestre anterior, o tombo deve ficar entre 1,5% e 2,5%, feito o ajuste sazonal. A expectativa generalizada, porém, é de que a recuperação, ainda que lenta, se iniciou já no segundo trimestre deste ano.
O ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, sócio da Quest Investimentos, diz que o Brasil conseguiu passar com razoável tranquilidade por um rigoroso teste imposto pela crise. A forte valorização do real seria um dos sinais das boas condições da economia brasileira, ainda que impulsionada pela depreciação do dólar no mercado internacional e pela alta dos preços de commodities. O nível de reservas e o peso do mercado interno como motor do crescimento são bastante importantes, diz ele. "Nós passamos por um teste de stress nesta crise que não foi mole", afirma ele, lembrando que o crédito já dá sinais de recuperação e as vendas de automóveis estão em níveis razoáveis.
Para o ex-presidente do Banco Central (BC) Gustavo Loyola, sócio da Tendências Consultoria Integrada, uma grande vantagem do Brasil na atual crise é a possibilidade de adotar medidas fiscais e monetárias anticíclicas. "É o oposto do que ocorreu nas anteriores", diz ele. Nas turbulências externas do fim dos anos 90 e começo dos anos 2000, desvalorizações abruptas do câmbio levavam a aumento de juros e elevação do superávit primário, combinação que intensificava o quadro de desaceleração da economia. Desta vez, o BC reduziu os juros e o governo diminuiu o esforço fiscal.
O nível relativamente modesto do déficit em conta corrente em 2008 também ajudou o Brasil a se sair bem na turbulência. Em 2008, o rombo nas transações de bens, serviços e rendas do país com o exterior ficou em 1,7% do PIB, abaixo dos 6,4% da Hungria, dos 5,8% da Turquia, dos 2,9% da República Checa e dos 25,2% da Bulgária. Com a crise, ficou bem mais difícil financiar déficits elevados em conta corrente, o que tende a exigir ajustes severos no ritmo de crescimento, para diminuir a necessidade de importações. Não por acaso, os PIBs desses países devem registrar contrações fortes neste ano.
O volume de reservas do Brasil é bem superior ao desses países. Números do FMI mostram que, em abril, as da República Checa eram de US$ 37 bilhões, as da Hungria, de US$ 35,6 bilhões, as da Turquia, de US$ 67,6 bilhões e as da Bulgária, de US$ 15,6 bilhões. Esse indicador, porém, não é garantia de sucesso: a Rússia tinha quase US$ 600 bilhões em julho de 2008, e mesmo assim não conseguiu evitar um forte golpe da crise, causado principalmente pelo recuo do petróleo. Em abril deste ano , as reservas do país eram de US$ 383,9 bilhões.
Outra vantagem da economia brasileira é não estar "à mercê da cotação de preço de nenhum produto ou serviço específico", como diz a carta de maio do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). O presidente do Ibre, Luiz Guilherme Schymura, nota que, em meados de 2008, no pico das cotações das commodities, os termos de troca (diferença entre preços de exportações e importações) "haviam subido não mais do que 10% em relação à media que prevaleceu desde o começo de 2006". "Este fato reforça a ideia de de que nossa pauta de exportação e importação tem uma diversificação tal que não nos deixa vulneráveis a mudanças drásticas nos preços relativos."
É um caso muito diferente de países como a Venezuela ou a já citada Rússia, cujo desempenho das contas externas e das contas públicas é extremamente ligado às receitas do petróleo. Em 2008, a Rússia teve um superávit nominal (resultado fiscal que inclui gastos com pagamento de juros) de 4,6% do PIB. Para este ano, a situação deve mudar totalmente, com a agência de classificação de risco projetando um déficit de impressionantes 6,8% do PIB, uma piora de 10,4 pontos percentuais do PIB em apenas um ano. No Brasil, mesmo com a redução do esforço fiscal para pagar juros, o déficit nominal deve ficar em 2,2% do PIB neste ano, segundo o consenso de mercado, apenas um pouco superior ao 1,5% do PIB registrado em 2008.
O diretor-executivo da Fitch Ratings no Brasil, Rafael Guedes, destaca, além da proteção conferida pelas reservas de quase US$ 200 bilhões, a saúde do sistema financeiro brasileiro. O crédito externo secou logo em seguida ao agravamento da crise, em setembro de 2008, mas os bancos não entraram em colapso. Nos últimos meses, os empréstimos e financiamentos reagiram um pouco, principalmente para a pessoa física.
Guedes observa que algumas fragilidades da economia brasileira acabaram por se tornar vantagens na crise. É o caso da baixa relação entre o crédito e o PIB, o nível elevado dos compulsórios (os recursos que os bancos têm que deixar depositados no BC) e até do patamar alto da taxa Selic. O BC pôde reduzir os compulsórios e baixar os juros básicos - países que tinham taxas baixas ficaram sem munição monetária para enfrentar o cenário de desaquecimento da atividade econômica.
Essas avaliações não querem dizer, porém, que o Brasil sairá ileso da crise - Guedes, por exemplo, estima queda do PIB de 1,2% neste ano. Ele diz que, se o Brasil tivesse controlado o ritmo de expansão dos gastos correntes, poderia usar a política fiscal de modo mais eficiente, por meio de um aumento mais forte dos investimentos. De qualquer modo, os números sugerem que o Brasil vai melhor que uma parte razoável dos outros países em desenvolvimento, dizem Guedes e os outros analistas.
O economista-chefe da RC Consultores, Marcel Pereira, nota que desde julho de 2007 o risco Brasil é inferior ao da média dos emergentes. Hoje, o risco brasileiro está algo como 150 pontos abaixo da média desses países. "É uma mudança muito significativa", diz ele, em relatório, lembrando que o histórico de moratórias, inflação alta, vulnerabilidade externa a volatilidae no câmbio fizeram com que, durante décadas, "o Brasil fosse visto como uma das economias emergentes com maior nível de risco para investimentos". Graças a um "árduo trabalho de ajuste macroeconômico", esse quadro mudou, diz Pereira.
Veículo: Valor Econômico