Um dos mais rentáveis negócios imobiliários da Argentina está às margens de uma vala de esgoto a céu aberto, o rio Riachuelo, que separa Buenos Aires do município suburbano de Lomas de Zamora. E é do lado de Lomas, em meio a milhares de casas térreas sem reboco e ruas de terra, que se comercializa o metro quadrado a US$ 10 mil. Em uma área que até os anos 90 era ocupada por balneários populares, funciona duas vezes por semana a feira de roupas e calçados de La Salada.
De acordo com o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, está entre os cinco maiores centros de venda informal, pirataria e contrabando da América Latina: rivaliza com Ciudad del Este, no Paraguai, San Andrecito, na Colômbia, Tepito no México e a feira da Bahía, em Guayaquil, no Equador. O relatório, cuja versão mais recente foi divulgada há um mês, afirma que "seis mil vendedores comercializam para 20 mil consumidores por jornada ". Ao avaliar a dimensão da feira, os burocratas norte-americanos pecaram por conservadorismo. Seis mil vendedores são apenas os que ocupam o espaço coberto nas áreas de Urkupiña, Ocean e Punta Mogotes. E vinte mil são apenas os consumidores que chegam nos ônibus fretados às terças-feiras e aos domingos, os dois dias de funcionamento da feira.
"Apenas um em cada cinco chegam à feira nestes ônibus", diz Jorge Castillo, que administra o espaço de Punta Mogotes, a maior das feiras, e que registrou comercialmente a marca de La Salada. A conta que ele faz é surpreendente. " Cada um dos postos consegue 45 mil pesos, em média, por semana, o que dá 180 mil pesos por mês. Considerando só os que estão nas áreas regulares, são 1 bilhão de pesos mensais, ou 12 bilhões por ano. Pelo câmbio de hoje, estamos falando em US$ 2,7 bilhões".
"Castillo não exagera com estas cifras, sobretudo quando se pensa que há pelo menos outros dez mil vendedores nas áreas descobertas", diz um adversário declarado do administrador de La Salada, o ativista social Gustavo Vera, que dirige a ONG "La Alameda", dedicada a combater o trabalho em condições degradantes exercido por imigrantes bolivianos. Desde 2006, Vera denunciou 32 confecções que vendem em La Salada e empregavam em condições comprometedoras 526 trabalhadores.
Um par de tênis para crianças custa 50 pesos, cerca de R$ 20. Uma calça jeans para homem é 70 pesos e um vestido para mulheres gordas é 60 pesos. Cobra-se muito pouco pelas roupas em La Salada porque são as próprias confecções que fazem a venda. Em geral, a produção de camisas e sapatos é feita em fundo de quintal, não raramente por imigrantes bolivianos. O nível de informalidade laboral é próximo a 100%. Os ocupantes dos boxes de venda são registrados como "monotributistas", o equivalente ao Simples na Argentina, e não pagam mais que duzentos pesos por mês. "Cada feirante é produtor e tem 30% de lucro sobre o custo da matéria prima. O custo social não existe, porque não há empregados", disse Castillo.
A maior margem está nas marcas pirateadas. Camisetas Adidas, Nike ou GAP são vendidas por 30 pesos, doze vezes menos que o registrado no shopping center da avenida Figueroa Alcorta, no Barrio Parque, um dos mais sofisticados de Buenos Aires. "La Salada é um fenômeno produzido pela rebelião das pequenas confecções contra o comércio tradicional e contra as marcas. Os maiores responsáveis pelas piratarias são os próprios fornecedores das grifes", diz Vera, lembrando que há 80 varejistas de marca na Argentina sendo processadas por comercializarem roupas produzidas em condições degradantes.
Segundo um levantamento da Câmara Argentina de Comércio (CAC), metade das mercadorias vendidas por camelôs nas ruas de Buenos Aires é falsificada ou tem origem no contrabando. "Não temos como fazer a mesma avaliação em La Salada, pelas dificuldades de ingresso dos pesquisadores no local, mas nossa estimativa é que o percentual seja o mesmo, já que os camelôs são quase todos intermediários de mercadorias compradas lá", observou o economista chefe da CAC, Gabriel Molteni.
A segmentação do setor de confecção favorece a atividade ilegal. A produção de uma camisa envolve desde o fornecedor da fibra, passando pelo produtor do pano, indo a seguir pelas unidades que fazem o corte, a estamparia e a costura. "Na produção da matéria prima há um grande controle e casos de sonegação, trabalho escravo e pirataria são isolados. Mas as atividades de confecção são pulverizadas. Há 252 mil costureiros na Argentina. Destes, 78% dão origem a produtos com algum grau de ilegalidade. E desta mão de obra, 150 mil trabalhadores são provenientes da Bolívia", disse Vera.
A ponta desse varejo é alvo da repressão estatal no momento. A Prefeitura de Buenos Aires começou no mês passado a retirar camelôs das ruas do centro da cidade, eliminando uma das engrenagens da venda. As ações de maior impacto aconteceram na rua Florida, muito frequentada por turistas brasileiros. Como La Salada fica muito distante do centro da capital e em um subúrbio marcado pela criminalidade, a intermediação das mercadorias torna-se uma decorrência da demanda. "La Salada originou pelo menos 42 'saladitas', dentro de Buenos Aires, que são concentrações de vendedores ambulantes que vendem as mesmas mercadorias", disse Molteni.
Na última semana, a gendarmeria, um braço do governo federal, removeu barracas de cerca de 10 mil vendedores de La Salada que compunham uma quarta feira, a de La Ribera. Estes ambulantes ocupavam as margens do Riachuelo na área externa a das três feiras regulares. "Eram um universo ilegal dentro do universo ilegal, que vendiam ainda mais barato porque sequer pagavam o aluguel de espaço e o monotributo", afirmou Molteni. A operação teve amparo judicial e foi motivada pelos trabalhos para o saneamento do rio, que exige a desocupação das áreas de risco. Os feirantes removidos tentaram ocupar áreas mais próximas a das feiras legais, e houve enfrentamento armado. O tiroteio de quinze minutos na manhã de sábado teria durado quinze minutos e tido pelo menos cinco baleados.
Veículo: Valor Econômico