Produtores negociam com órgãos federais e estaduais revisão na normativa que libera venda do produto. Exigências do texto geram burocracia e custos que colocam a atividade em xeque
Em princípio, parecia a libertação do queijo. Finalmente, os produtores de um dos mais típicos produtos mineiros poderiam vendê-lo fora das divisas do estado para que moradores de outros estados (e até países) pudessem saborear o quitute livremente. Mas, em vez disso, a regulamentação do queijo impôs normas ainda mais rigorosas para a produção artesanal do produto. Na tentativa de mudar os rumos desse cenário, produtores e representantes do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) negociam com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) revisões pontuais na Instrução Normativa 57, publicada pelo órgão em dezembro do ano passado.
Nos dias seguintes à publicação, o regulamento foi classificado pelo presidente da Cooperativa São Roque de Minas Crédito (Samrocredi), João Carlos Leite, como a Lei Áurea do queijo canastra (e também do queijo do Serro, do Salitre e de outras regiões do estado), em alusão à legislação criada pela princesa Isabel, em 1888, para libertar os escravos. Sob o argumento de problemas sanitários, os fabricantes de queijo artesanal ficavam proibidos de vender o produto fora do estado caso ele tivesse menos de dois meses de maturação, o que colocava em xeque a sobrevivência dos produtores. Em Minas, legislação especial permitia o comércio regular, independentemente do tempo de cura. Sem a possibilidade de comercializar o frescal além das divisas, uma cadeia ilegal transportava o queijo para outros estados, numa espécie de contrabando do produto.
Depois de anos negociando a regulamentação da produção do queijo, o Mapa aceitou os argumentos dos mineiros e publicou a IN 57. Entre outros itens, a normativa considerava que as queijarias deveriam ser classificadas como livres de tuberculose, brucelose e atestar o controle de mastite. Em outro artigo, ficou estabelecido que o leite cru seria analisado mensalmente em laboratório da Rede Brasileira do Leite para composição centesimal, contagem de células somáticas e contagem bacteriana, tendo que ser feitos exames para detecção de mastite clínica e subclínica periodicamente.
Se, de antemão, a legislação aparentava ser o impulso necessário para alavancar a presença do queijo minas na mesa de outros brasileiros, com análise mais detalhada especialistas e produtores perceberam que o texto se traduzia em aumento considerável de custos e burocracia para o setor. “O texto permite comercializar o queijo, mas inviabiliza sua produção”, sintetiza Leite.
Ele explica que o fato de ser obrigatório a propriedade rural ser certificada como livre de brucelose e turbeculose cria um grave empecilho para a cadeia. Isso porque para obter tal certificação é necessário que todos os animais sejam nascidos naquele local, ou seja, fica proibida a aquisição de bois e vacas de outras fazendas. “Hoje, somente propriedades que usam alta genética se adequam a isso”, afirma. Mas somente isso não significa extinguir a possibilidade de comer um produto oriundo de um animal contaminado. Pelo contrário. É necessário que todos passem por exames clínicos de brucelose e tuberculose anualmente. Em caso de soropositivo, é feito o descarte do animal.
Análise cara
"O texto permite comercializar o queijo, mas inviabiliza sua produção... Hoje, somente propriedades que usam alta genética conseguem se adequar", diz João Carlos Leite, produtor e presidente da Cooperativa São Roque de Minas Crédito, sobre a Instrução Normativa 57 do Mapa
O exame mensal do leite também representa alto custo para a cadeia. A análise tem custo de R$ 800, o que tornaria a produção deficitária ou elevaria o preço do produto consideravelmente. Em média, os pequenos fabricantes da Canastra ganham R$ 60 por dia com a venda de cinco queijos a R$ 12 cada. “O queijo europeu também é feito à base de leite cru, mas pode ser comercializado legalmente e o nosso não pode”, critica o diretor-técnico e veterinário da Associação dos Produtores Artesanais do Queijo Canastra, Johne Santos Castro.
Diante disso, representante dos produtores e do governo de Minas se reuniram na sexta-feira com integrantes do ministério para apresentar uma nova proposta, cancelando esses dois tópicos e outros considerados entraves para a produção. A ideia é refazer tópicos da IN 57 e formatar um texto que permita até mesmo a exportação do queijo. Em contato com o IMA e o Mapa, ambos os órgãos preferiram não se manifestar sobre o que será decidido. Mas, segundo fontes que participam das negociações, é bem possível que a proposta seja aceita. O governo federal tem se mostrado aberto para negociar.
Entenda o caso
Sob a justificativa de problemas sanitários, fabricantes de queijo artesanal do interior de Minas ficavam proibidos de vender o produto fora do estado caso tivesse menos de 60 dias de maturação.
Sem poder comercializar o frescal fora das divisas, os produtores criaram uma cadeia ilegal que contrabandeava o queijo nas madrugadas, levando-o principalmente para o interior de São Paulo.
Em dezembro do ano passado, com a publicação de instrução normativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), produtores entendiam que chegava ao fim a cadeia ilegal e que o queijo artesanal poderia ser vendido em todo o país e até no exterior.
Passado quase um ano, produtores e governo de Minas tentam renegociar pontos da normativa por entender que, em vez de facilitar o comércio, a nova legislação inviabiliza a venda além das divisas mineiras
França também enfrentou polêmica
Com a fama de melhores produtores de queijos no mundo, os franceses já se mobilizaram em diferentes períodos desde o fim dos anos 1980 contra a teoria de que os queijos de leite cru ameaçam a segurança alimentar. As primeiras restrições surgiram em regulamentação europeia de 1982, mas o produto acabou salvo, desde que adequado às regras severas de limpeza no processo de fabricação e à troca de materiais como a madeira e a pedra pelo plástico não poroso e aço inoxidável.
Novos protestos surgiriam em 1986, quando os norte-americanos propuseram a pasteurização como norma internacional, e em 1997, também motivados por pedido dos Estados Unidos apresentado à Organização Mundial de Saúde (OMS), restringindo o comércio desses produtos. A polêmica voltou a crescer no começo desta década, com a proposição de novas restrições, mas venceu o chamado Décret Fromage a favor do leite cru. Não é por pouco que os produtores se organizam: há estimativas de que 100 dos 360 tipos de queijos fabricados no país usam o leite cru como ingrediente básico.
Setor deve ter novas regras
Uma comissão criada pelo governo federal em parceria com representantes dos produtores deve elaborar o marco regulatório para a produção agroartesanal. O texto terá significado semelhante ao da legislação que rege a produção agroindustrial nacional, elaborado na década de 1970. A proposta é que sejam definidas normas para a fabricação de cachaça, mel, doces e demais produtos considerados artesanais. Assim, tudo o que for feito em propriedades rurais terá que seguir à risca a legislação.
O grupo, por enquanto, trabalha informalmente, com reuniões mensais entre representantes de órgãos estaduais e federais com produtores rurais. Com isso, para qualquer alteração serão necessárias aprovação no Congresso e sanção presidencial. Atualmente, basta uma decisão do Executivo para que a normativa seja revogada. “Não dá segurança jurídica ao setor. Dependendo do ocupante da cadeira, o ato pode ser revogado”, afirma o presidente da Cooperativa São Roque de Minas Crédito (Samrocredi), João Carlos Leite.
A legislação agroindustrial tem mais de 1 mil artigos, o que significa que a elaboração do texto agroartesanal deve demandar bastante tempo ainda. Um ponto que pode ser considerado refere-se à delegação de responsabilidade sobre a inspeção. A ideia é que os municípios sejam responsáveis pela fiscalização, aumentando o rigor sobre os produtores. (PRF)
Veículo: Estado de Minas