O governo brasileiro decidiu fazer um "acompanhamento interessado" das discussões da Vale com o governo argentino, como resultado da reunião, na quinta-feira, entre as presidentes Dilma Rousseff e Cristina Kirchner.
Como ficou evidente pela nada informativa entrevista das duas ao fim do encontro, ambas estão decididas a mostrar união e apoio mútuo - especialmente apoio do Brasil à Argentina, que, sob pressão de credores e forte especulação no mercado de câmbio do país, se arrisca a se tornar um pária no mercado financeiro internacional. Em síntese, busca-se uma saída honrosa, que garanta uma transição tranquila na saída da Vale no país, sem risco de confisco de seus ativos e sem abruptas demissões em massa.
Na sexta-feira, a Vale anunciou um acordo para garantir pagamento parcial por cinco meses e dispensar gradualmente funcionários ocupados no projeto Rio Colorado, de exploração de potássio, onde já enterrou cerca de US$ 2 bilhões, mas não vê como manter a previsão de investimentos, que chega a US$ 11 bilhões. Ela tem direito, porém, de manter por algum tempo a concessão das minas. Os argentinos chegaram a mostrar a Dilma uma proposta para redimensionar o projeto e baratear sua execução.
A declaração de que a Vale iria mesmo sair do país, feita no mesmo dia da visita, pelo presidente da empresa, Murilo Ferreira, chegou a irritar o governo, que viu, no anúncio do executivo, um ruído desnecessário em meio aos esforços de Dilma por garantias do governo argentino contra retaliações à companhia.
As conversas entre Dilma e Cristina foram muito além da questão da Vale, porém, e serviram, principalmente, para abrir espaço político a duras negociações técnicas, previstas para os próximos dias.
No topo das discussões, para o governo brasileiro, estiveram as barreiras ao comércio bilateral, especialmente a Djai, a Declaração Juramentada Antecipada de Importação, usada pelas autoridades argentinas para controlar a entrada de produtos importados no país, e responsável pela queda nas vendas de manufaturados brasileiros no mercado vizinho.
Evitando o tom de confronto, Dilma disse à presidente argentina que a manutenção da Djai contamina a relação bilateral e dificulta os esforços do governo para mostrar sintonia na dupla Brasil-Argentina. Cristina teria autorizado seus auxiliares a buscar uma solução.
Em resumo, a visita serviu para os brasileiros deixarem claro que o relacionamento entre os dois países tem um trilho único, que não pode ser dividido em três vias diferentes, uma para o investimento, uma para o comércio e outra para financiamento. O governo Dilma está disposto a estimular a ida de empresas brasileiras à Argentina, inclusive com facilidades de financiamento; e apoiará os argentinos em suas dificuldades no mercado internacional; mas a boa vontade está intimamente ligada ao que se passar no comércio. Não haverá mudanças no regime automotivo, por exemplo, se, informalmente, o secretário de Comércio Interno, Guillermo Moreno, forçar montadoras a exportar US$ 1 para cada US$ 1 importado do Brasil.
No encontro dos técnicos, houve decisões positivas, que não foram anunciadas pelas presidentes, talvez porque chamariam atenção para obstáculos exóticos no suposto livre comércio entre os dois países: os brasileiros aceitaram levantar parcialmente as barreiras ao lagostim argentino (na verdade, camarões, grandes como não há no Brasil), com uma cota de até 20 mil toneladas, que começará com 5 mil, neste ano; os argentinos aceitaram dar uma cota de 2 mil toneladas mensais de importação para a carne suína brasileira. Está adiantada, ainda, a discussão para liberar a entrada, no Brasil, de limões produzidos em Tucumã, na Argentina.
Dilma teve duas horas de reunião com Cristina, a sós, e uma tarde de reunião com ministros de lado a lado, seguida da entrevista e de um jantar de trabalho. Na próxima semana, equipes dos dois países, chefiadas pelo ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, e pelo ministro do Planejamento argentino, Julio de Vido, devem voltar a se encontrar, em Montevidéu, às margens de uma reunião do Mercosul, para aparar arestas restantes.
Uma coincidência didática se seguiu ao encontro das presidentes: na sexta-feira, o mercado paralelo ("blue", como o chamam os argentinos) levou as cotações da moeda americana a uma alta recorde, para 9,37 pesos por dólar. Um indicativo dos temores de desvalorização na Argentina e de fuga para a moeda forte, velho hábito no país vizinho.
Não passou despercebida pelas agências de notícias a autorização de Cristina Kirchner, no começo do mês, para depósito de US$ 400 milhões do governo no Fundo Monetário Internacional (FMI), aumentando, assim, o acesso do país a socorro financeiro de emergência. O FMI, como se sabe, é demonizado pelo governo argentino, que o culpa, não sem razão, pela crise econômica argentina, no começo dos anos 2000.
A Argentina já foi um "país normal", elogiado pelos analistas de mercado e apontado como exemplo, pela sua fidelidade ao modelo ortodoxo; a adesão acrítica aos ditames do mercado empurrou o país ao fim do atrelamento do peso ao dólar e ao calote da dívida, e, hoje, serve de justificativa, na retórica oficial, até para barbaridades na gestão econômica, como o desesperado recurso ao controle de preços, na base de ameaças às empresas.
Mas o temor argentino de perder investimentos para a força gravitacional do mercado brasileiro tem grande fundamento, como demonstrou, na quarta-feira, a gigante do agronegócio El Tejar, ao anunciar a decisão de mover sua sede de Buenos Aires para São Paulo. Difícil imaginar que o governo Kirchner assistirá impassível a essa migração de negócios para o vizinho maior. As trocas de sorrisos e abraços entre Dilma e Cristina podem ser o começo de negociações para lidar com esse dilema. Ou revelar a incapacidade de harmonizar os interesses dos dois maiores sócios do Mercosul.
Veículo: Valor Econômico