Corrosão de renda após ascensão social gera demanda por saúde, educação e transporte e pega Estado despreparado
A encruzilhada com a qual se deparam as famílias com menor poder de compra, depois do acesso maior ao consumo, impõe uma mudança de curso na economia, com foco nos investimentos para reforçar, principalmente, a oferta de serviços que a classe C passou a demandar e em que não foi atendida. Como mandam as leis da economia, qualquer desequilíbrio entre oferta e procura de bens e serviços tende a desaguar em pressão nos preços, gargalo que não devia ser tratado como surpresa, na avaliação do economista Robson Gonçalves, professor dos cursos de MBA da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Estava bem claro desde o governo Lula que o país chegaria a esse paradoxo. A condição das famílias de baixa renda é indiscutivelmente melhor, mas o país não se preparou para atender as demandas das pessoas beneficiadas pela ascensão social”, afirma.
Compartilha da visão o professor Waldir Quadros, do Instituto de Economia da Unicamp, convencido de que as manifestações que tomaram conta do país nos últimos dias cresceram também devido a uma grande pauta aberta. “A renda e o consumo melhoraram muito para a massa trabalhadora (a chamada classe C), mas os serviços que ela usa são precários. Saúde pública, escola, educação não evoluíram no mesmo ritmo”, diz. Para Quadros, o crescimento baseado na expansão do consumo está exaurido; resta agora elevar os investimentos na economia, retomando temas importantes, como o pré-sal e aportes no sistema ferroviário. De imediato, o especialista acredita que a classe média se sustenta, garantindo as conquistas.
O ministro-chefe interino da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), Marcelo Neri, argumenta que a renda média mantém crescimento, embora menor, o que não significa que o país não deva ouvir os manifestantes nas ruas. Dados referentes ao ano passado, marcado por inflação mais alta e baixo crescimento, indicam que a renda domiciliar per capita evolui 5,1%, ante 0,1% de expansão do PIB per capita (o PIB, Produto Interno Bruto, que retrata a produção de bens e serviços, dividido pela população). Quando incorporados aos cálculos a renda dos aposentados, os rendimentos crescem a 6%.
“Pode ser, sim, que as pessoas que subiram à classe média estejam querendo mais. De outro lado, elas estão se adaptando e não podemos deixar de considerar que nós, brasileiros, somos muito críticos em relação ao país”, diz Neri. Para o ministro, os protestos talvez estejam espelhando uma situação em que “certos grupos estão mais felizes que outros”. Robson Gonçalves observa que o resultado de uma infraestrutura de serviços que não conseguiu acompanhar o crescimento da demanda da nova classe média tende a ser o encolhimento dessa classe na pirâmide social.
Pressão Renata Mesquita, dona de casa, tem rendimentos compatíveis com a classe média brasileira. Ela diz que sentiu a alta de preços também em serviços como o condomínio e TV paga, e bem forte no sacolão e supermercado. Por mês, a família desembolsa R$ 900 com escola particular. “Se a educação fosse gratuita e de qualidade, aliviaria muito o orçamento da classe média.”
Maria Teresa Fernandes, advogada aposentada, está se segurando para equilibrar as finanças domésticas. Ela calcula que seu orçamento com alimentação cresceu 25% nos últimos seis meses. Para fazer frente à alta dos preços ela mudou hábitos de consumo. Passou a frequentar supermercados que oferecem preços mais baixos e ofertas, onde agora compra os produtos básicos. “Fazendo isso a diferença na lista é de pelo menos R$ 100”, afirma. Maria Teresa trocou também de marcas de alguns produtos de limpeza, leite e café. Segundo ela, a pressão do custo de vida é maior nos alimentos que nos serviços. Ela, que tem um de seus netos estudando na rede pública de ensino, gostaria que a qualidade da educação pública fosse melhor.
O problema da concentração
Brasília – A disparada geral dos preços no Brasil tem muitos fatores, desde a infraestrutura insuficiente até a variação do câmbio. Mas uma das mais importantes ainda é pouco visível ao público: a concentração de setores econômicos em poucos grupos empresariais, que lideram as vendas e definem as margens de lucro. A política do governo — desde a gestão Lula — dedicada a criar “campeões nacionais”, mediante o apoio à compra de concorrentes ou à fusão com eles, agravou esse quadro.
A fatia de mercado reservada aos principais atores em áreas estratégicas ficou maior e a competição menor. Com isso, os preços têm subido nas prateleiras acima da inflação. Em alguns casos, como da cerveja e do leite longa vida, os reajustes acumulados nos últimos 12 meses até maio foram o dobro dos 6,5% registrados pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) no período.
A compra, este mês, da Seara, do Grupo Marfrig, pelo frigorífico JBS foi mais um capítulo na onda aglutinadora inaugurada nos anos 1990, com o surgimento da Ambev. Nessa mesma história incluem-se o surgimento da multinacional de bebidas Inbev, após um improvável casamento de Antarctica e Brahma; da BRF, da união de Sadia e Perdigão; e ainda a compra das companhias áreas Varig e Webjet pela Gol. Seus ganhos de escala e de rentabilidade não chegam, contudo, ao cliente nacional.
O presidente do Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de Consumo (Ibedec), Geraldo Tardin, cita a aviação civil, a indústria alimentícia, o varejo e a telefonia como os principais ramos em que a retração da concorrência pesou no bolso.
“As fusões e as aquisições apoiadas pelo governo deixaram a indústria mais concentrada e o cenário macroeconômico mais complexo”, comenta Sérgio Giovanetti Lazzarini, professor do Instituto Insper. Na sua opinião, a eleição de um “campeão nacional” só se justifica em situações muito específicas, referentes a ramos sofisticados e muito internacionalizados. “Esse é o caso da Embraer, atrelada a uma instituição de pesquisa e à formação de mão de obra”, cita.
Veículo: Estado de Minas