Na esquina das ruas 25 de Março e Hércules Florence, região central da capital paulista, uma fila gigante se fez na manhã de quinta-feira para saborear arroz, feijão, fígado acebolado e virado de abobrinha. O menu do dia do restaurante popular Bom Prato, que serve refeições a R$ 1, não requer preparo sofisticado, apenas farto. Para servir os 1,8 mil comensais que visitam o lugar todo dia, cozinha-se em caldeiras com capacidade para 75 quilos. Esses rústicos e imensos utensílios de alumínio em nada lembram as requintadas panelas de cobre ou de ferro fundido, expostas a poucos metros dali na Doural, ao preço de R$ 3 mil cada uma.
A centenária varejista de utilidades domésticas, fundada em 1905 por um imigrante sírio, vem se esmerando em buscar um público cada vez mais sofisticado, longe das donas-de-casa da classe C e ainda mais distante dos freqüentadores do vizinho Bom Prato (moradores de rua, catadores de papel, camelôs e vendedores). A quarta geração da Doural deseja para si a clientela dos Jardins, bairro da zona oeste da cidade de São Paulo.
"Posso atrair clientes da classe A, que não vêm à 25 de Março apenas por conta do preço menor, mas também devido à nossa variedade, difícil de encontrar nas lojas dos Jardins, por exemplo, que trabalham em um espaço reduzido", diz Fernando Assad Abdalla, de 33 anos, bisneto do fundador Assad Abdalla, que ao lado do irmão André comanda hoje o negócio da família. São 60 mil itens de utilidades domésticas, tapetes, cortinas, tecidos e cama, mesa e banho, espalhados (e, em alguns momentos, apertados) em 1,6 mil metros quadrados, que recebem por dia mais de 1,5 mil consumidores.
Além da única loja física Doural, o negócio envolve um site com 3 mil visitantes ao dia, uma confecção de cama, mesa e banho, uma operação de tecidos e tapetes importados (a Abdalla Imports) e outras duas lojas físicas menores, a Casa e Cia. e a ABC, ambas na 25 de Março. Ao todo, são 400 funcionários, sendo 70 vendedores.
Entre os clientes do atacado da Doural estão desde hotéis, pousadas e restaurantes (que respondem por 10% da sua receita), passando por hipermercados e home centers, até varejistas do Jardins.
Entre os trunfos para atrair o cliente mais endinheirado - em especial o típico gourmet, que não se incomoda de pagar algumas centenas ou milhares de reais por uma panela ou um batedor de claras - estão as marcas Silit, da Alemanha; a holandesa Breville; e as francesas Mauviel, Cristel e Staub (esta é vendida com exclusividade na Doural). Segundo Abdalla, os artigos mais sofisticados custam entre 15% e 35% menos do que nas lojas de grife como Mickey, Cleusa Presentes e Roberto Simões Casa.
O próprio Abdalla, contrariando a tradição da família que mantém os homens distantes das panelas, decidiu aprender a cozinhar quando começou a oferecer utilidades domésticas na loja, há seis anos. Hoje, essa seção já responde por metade das vendas da Doural. "Eu entrei no curso Wilma Kövesi de Cozinha, para aprender o básico e já fiz mais uns 50 cursos depois disso", diz ele, que quando se casou, há alguns anos, aproveitou a reforma da casa para fazer duas cozinhas, uma para o dia-a-dia e outra para ele, que testa todas as novidades e dá dicas de receita no Blog da Doural. O site da empresa já representa 15% das vendas.
O pai, Assad Abdalla, continua longe do fogão. "Em casa, quem cozinha é a minha mulher", diz ele, que aos 65 anos continua indo religiosamente à Doural e se misturando aos clientes para ouvir o que eles têm a dizer. A tradição é a mesma desde 1905 e Fernando Abdalla faz questão de manter. "Nem almoço, porque assim ganho uma hora e meia", diz ele, que chega às 7 da manhã na loja e, quando não está atendendo clientes, observa todo o movimento de um ponto estratégico no mezanino.
É de Fernando Abdalla a empolgação em torno dos produtos gourmet, que já representam 30% da receita da Doural (o item mais caro é uma cafeteira da italiana Saeco, que custa R$ 7,8 mil). Em 2008, enquanto o tíquete médio da loja como um todo caiu de R$ 85 para R$ 65 nos últimos três meses do ano, como reflexo da crise, a média de compras dos itens gourmet cresceu 50%, para R$ 95.
"Mais clientes gourmet têm descoberto a Doural, que fica em uma localização privilegiada, ao lado do Mercado Municipal", diz Abdalla. Em contrapartida, a queda na compra dos itens medianos aconteceu porque o consumidor, receoso dos reflexos da crise sobre o seu orçamento, preferiu itens mais em conta. "Mas o fluxo de vendas continuou o mesmo, o que a maioria dos clientes têm feito é buscar itens mais baratos", afirma.
Agora, a Doural vai abrir dentro do seu único ponto-de-venda um espaço para a venda das facas alemãs Zwilling (cuja faixa de preço varia de R$ 80 a R$ 3 mil). "Eles (a Zwilling) só tem dois pontos-de-venda no Brasil, no Shopping Bourbon e na Alameda Lorena (Jardins), e agora estão montando o terceiro aqui, dentro da loja, com móveis próprios, importados e sob medida para o espaço", conta Fernando. Também está nos planos do empresário a abertura de um lounge para arquitetos e decoradores, dentro da loja, que passará a oferecer mais itens de decoração, que hoje têm participação tímida. "Percebemos que há demanda nesse segmento", diz ele.
Com 43 anos de 25 de Março, o pai Abdalla assina embaixo e destaca a principal diferença que notou desde que começou oficialmente no negócio, em 1966. "Antes vinha só gente simples, agora vem de todo tipo", diz o patriarca, referindo-se aos consumidores mais endinheirados. "É por isso que a gente está pronto para atender todo mundo". O que inclui gente disposta a fazer pratos bem mais requintados do que os do restaurante popular que lota ao lado da Doural.
Veículo: Valor Econômico