Por Juliana Oliveira Domingues, secretária nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública
Há 59 anos se comemora o dia mundial dos direitos do consumidor (famosa declaração ao Congresso do então Presidente dos EUA J. F Kennedy). Relembrar essa data nos remete ao atual cenário de incertezas: nunca foi tão desafiador trabalhar com a harmonização das relações de consumo em um país com tantas diferenças e desigualdades.
Se a economia 4.0 mudou drasticamente a lógica empresarial, a pandemia igualmente promoveu mudanças não desprezíveis no comportamento dos consumidores e dos fornecedores. Como fenômeno social, o mercado de consumo sofre modificações ao longo do tempo e as políticas públicas devem ser adaptadas às novas realidades.
A prioridade conferida ao direito do consumidor tem viabilizado, no Brasil, políticas públicas extremamente técnicas e alinhadas às melhores práticas internacionais. O nível de debates ultrapassou a linha populista ou vinculada a interpretações puramente dogmáticas para dar lugar a um debate baseado em princípios constitucionais, ciência, racionalidade econômica, aplicação de instrumentos regulatórios sofisticados e identificação e mitigação de falhas de mercado. Essa forma moderna e responsável de desenhar políticas públicas vem garantindo o bem-estar do consumidor no centro das políticas públicas, afastando medidas que teriam efeitos nefastos no médio e longo prazo.
Inserimos o Brasil na seara internacional, onde, finalmente, nossa Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) figura entre as autoridades mais respeitadas no mundo. Isto é extremamente relevante. Em um passado não muito distante, o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor esteve vinculado à extinta Secretaria de Direito Econômico (SDE). Quando entrou em vigor a Lei n.º 12.529/2011 houve um "rompimento": o CADE, com novas atribuições (antes conferidas à SDE), seguiu nos principais fóruns internacionais; já a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), criada em 2012, afastou-se de importantes debates internacionais. Hoje, graças aos esforços da atual gestão, a Senacon passou a ter protagonismo nos principais espaços globais. Cabe lembrar que, em dezembro de 2020, a Senacon finalizou a adesão formal às Recomendações da OCDE, aderindo, recentemente, como único não membro, ao instrumento de segurança de produto da OCDE, da mesma forma que foi convidada como destaque nas conferências internacionais na área de direito do consumidor tanto da UNCTAD como da OCDE.
Estar nesses fóruns é essencial em uma cadeia global. Ao mesmo tempo em que temos uma mudança do padrão de consumo decorrente do aumento de 68% nas vendas do comércio eletrônico em 2020 (dados da ABComm), temos diversos efeitos nos preços finais ao consumidor, decorrente dos fechamentos de fronteiras. Em um mercado globalizado, era evidente que, cedo ou tarde, as alterações nas cadeias de produção gerassem efeitos em produtos comercializados no Brasil.
Identificamos outras mudanças. Em estudo que aplicou a teoria dos jogos para analisar o bem-estar social e a preferência dos consumidores durante o distanciamento social, foi evidenciada a diminuição dos lucros das lojas que se socorreram no comércio eletrônico (por meio de plataformas) e o consequente aumento de lucro das plataformas de e-commerce e de entrega. Ou seja, de uma forma geral, cresceu o poder econômico das grandes empresas de tecnologia, que, em sua grande maioria, servem como canais de intermediação entre fornecedores e consumidores. Isto era algo inimaginável há 30 anos, quando entrou em vigor o Código de Defesa do Consumidor. E se o poder econômico dessas grandes empresas não está sendo tratado por outras autoridades, a Senacon foi pioneira na aplicação de sanções que repercutiram internacionalmente como medidas exemplares, sempre com foco no bem-estar do consumidor.
E as inovações não param! Em 01 de abril de 2020, entrou em vigor a Portaria do MJSP 15/2020, que determinou o cadastro de diversas empresas na plataforma oficial do governo federal: Consumidor.gov.br . Essa medida foi salutar, uma vez que não apenas as empresas de serviços e atividades essenciais foram obrigadas a ingressar na plataforma, mas, também, as plataformas digitais dedicadas ao transporte individual ou coletivo de passageiros ou à entrega de alimentos, ou, ainda, à promoção, oferta ou venda de produtos próprios ou de terceiros ao consumidor final. Muitas dessas empresas não tinham SAC e outras entraram em colapso com o fechamento dos call centers . Aliás, segue publicamente em discussão a minuta de novo Decreto do SAC que visa atender a uma necessidade urgente dos consumidores brasileiros: um sistema de atendimento ao cliente que seja realmente eficiente para a solução das demandas consumeristas.
Diante de inúmeras inseguranças jurídicas, o recriado Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (CNDC) permitiu um espaço institucional de diálogo entre os principais atores (v.g. stakeholder value de Davos) responsáveis pela execução de políticas públicas locais (Procons, Defensoria Pública, Ministério Público, etc.) e setoriais (agências reguladoras), com representantes de fornecedores, de consumidores e da academia. Criou-se um espaço de discussão para a construção de políticas públicas responsivas e adequadas à nossa realidade. Graças a esse esforço, foi aprovado o relatório sobre os critérios de identificação de preços abusivos, mitigando uma insegurança jurídica que perdurou por 30 anos, diante de um tipo aberto no CDC.
Proteção de dados dos consumidores segue na agenda de prioridades da Senacon, em meio a tantos incidentes de megavazamentos: há um núcleo no CNDC e a assinatura, neste mês, no acordo de cooperação técnica da Senacon com a ANPD. São políticas públicas jamais vistas no Brasil, incluindo a lançada no final de 2020 voltada às necessidades do consumidor com deficiência, contemplando milhões de cidadãos.
Garantir os direitos dos consumidores é garantir o seu bem-estar social. Isto significa não apenas a aplicação do CDC, mas boas ofertas, concorrência, acessibilidade e opções para o exercício da liberdade do consumidor e de seu pleno poder de escolha.
*Juliana Oliveira Domingues, secretária nacional do Consumidor do MJSP. Presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor. Presidente do Conselho Nacional de Combate à Pirataria. Professora Doutora da Universidade de São Paulo (FDRP/USP)
Fonte: O Estado de S. Paulo