Conhecer em detalhes as predileções à mesa e na limpeza da casa, os tipos de pele e até os hábitos do brasileiro ao escovar os dentes é prioridade para as empresas de bens de consumo que atuam no país. Esse, acreditam elas, é o caminho para ganhar espaço num mercado em franca expansão
Nos últimos seis meses, o egípcio Tarek Farahat, presidente da Procter & Gamble no Brasil, adotou como rotina a visita diária a supermercados. O objetivo é observar os consumidores na hora da compra, o que faz parte de uma estratégia maior. Só neste ano, a empresa reforçou em 20% sua verba de pesquisas no país, para mapear os hábitos de consumo locais. "Temos uma meta: dobrar as vendas. E para isso é preciso adaptar ao máximo os produtos à realidade e ao gosto dos brasileiros", diz Farahat. A tendência de adaptar produtos para atender às particularidades de um país começou nos anos 50 com a indústria automobilística e tornou-se crucial depois da globalização. Hoje, multinacionais do setor de bens de consumo, como a Procter & Gamble, lideram os investimentos nessa direção. A medida é estratégica quando se trata de conquistar mercado em países emergentes, onde a classe média ainda alarga suas fronteiras. No Brasil, nada menos do que 20 milhões de pessoas foram alçadas à classe C nos últimos três anos, dando novo contorno à sociedade de consumo. Isso é o que compensa os altos gastos com aquilo que o jargão do marketing chama de segmentação. O processo pode ser simples, como a adição de açúcar à receita de um biscoito, ou implicar na completa transformação de um produto. Tudo para contemplar hábitos ou até condições climáticas que variam de um país para outro. No Brasil, a tarefa é tanto mais difícil quanto mais necessária. Por sua dimensão continental, muda quase tudo de uma região para outra.
O segmento de bens de consumo abarca alimentos, bebidas e produtos de higiene e limpeza – basicamente tudo o que se encontra em um supermercado. Ele é composto, grosso modo, de quinze grandes empresas no mundo, entre gigantes de alimentos como a Pepsico e a Kraft e aquelas voltadas exclusivamente para higiene e beleza, como a Johnson & Johnson. Apenas duas dessas companhias globais, a Procter & Gamble e a Unilever, produzem mercadorias tão variadas como sorvete, xampu, detergente, ração para cachorro e pilha. Ambas estão esparramadas por mais de uma centena de países e, juntas, faturam algo como 140 bilhões de dólares por ano – quase o mesmo que todo o setor de eletrônicos. Para as empresas, o melhor seria investir na fabricação, por exemplo, de uma única pasta de dentes e vendê-la no mundo inteiro. Mas, para se firmarem em tantos países, elas se veem obrigadas a diversificar seu portfólio de produtos e adaptá-lo ao gosto de cada lugar.
Segmentar significa, num primeiro momento, sacrificar ganhos de escala. Se o item é voltado para um grupo específico, o volume da produção se reduz e os custos aumentam. Em mercados como o brasileiro, o chinês ou o indiano, contudo, mesmo quando um produto se destina a determinado nicho, seu alcance é grande. A Nestlé criou, em 2005, um leite em pó exclusivamente para o Nordeste, ao qual adicionou vitaminas que são deficientes na alimentação local, e ainda o embalou em saco plástico, para baixar o preço. Com tais ajustes, já vende nessa única região brasileira quantidade de leite em pó equivalente à que consome a população inteira de um país como o México. "Criar e adaptar produtos para atender às demandas de um país torna-se interessante quando ele oferece um mercado consumidor de tamanho razoável e que dá sinais de efervescência", diz Eugenio Foganholo, diretor de uma consultoria especializada em varejo.
Boa parte das adaptações feitas em países mais pobres, como o Brasil, tem como prioridade tornar esses produtos acessíveis a pessoas com poder aquisitivo menor. É o que se observa no exemplo do leite em pó, mas também na decisão dos fabricantes de chocolate de substituir manteiga de cacau por gordura vegetal, o que significou um corte de 50% no preço final das barras brasileiras, ou na aposta da indústria no velho sabonete em barra, em detrimento das versões líquidas, que dominam o mercado na Europa e nos Estados Unidos (veja esses e outros exemplos no quadro). O que ocorre hoje no Brasil, no entanto, é uma verdadeira ampliação no rol de adaptações.
Adaptar um produto custa caro e é muito trabalhoso – uma verdadeira operação de guerra. A depender do tipo de modificação, setores que vão do laboratório ao departamento de marketing se envolvem no processo. Eis o que aconteceu, por exemplo, quando a Procter & Gamble decidiu lançar, neste ano, uma nova pasta de dentes no Brasil. Ainda que a fórmula fosse bastante semelhante à de outras pastas já criadas pela empresa, só nessa foi preciso investir algo como 100 milhões de dólares e três anos de trabalho, período em que se realizaram nada menos do que quinze pesquisas com 5 000 consumidores para desbravar, entre outras coisas, hábitos de escovação e a predileção por sabores. Foram criadas ainda cinquenta embalagens, para se escolher apenas uma.
UM XAMPU ÚNICO PARA O MERCADO BRASILEIRO
Juliana Azevedo, da Pantene: fórmula para pessoas habituadas a usar condicionador
Esse tipo de investimento leva de três a cinco anos para ser recuperado. Se as escolhas são acertadas, o retorno é alto. "Nossas vendas quadruplicaram depois que fizemos ajustes nos chocolates vendidos no mercado brasileiro", diz a gerente de marketing da americana Hershey’s no Brasil, Renata Vieira. Em 2001, com os tabletes importados encalhando nas prateleiras, a Hershey’s não teve alternativa senão construir uma fábrica para atender a uma exigência local: os brasileiros desaprovavam a barra individual, por considerá-la grande demais. O peso, de 70 gramas, havia sido calculado para atender à demanda dos americanos. Para fabricar os atuais tabletes de 25 gramas no Brasil, foi necessário montar uma linha de produção inteiramente diferente. À receita original, adicionaram-se ainda açúcar e cacau nacional, que, ao contrário do americano, deixa um leve gosto de queimado. Era o que queriam os brasileiros, segundo apontavam as pesquisas. Curiosamente, o mesmo chocolate sofreu mutação contrária na China. Ali, a Hershey’s reduziu o açúcar para ajustar-se a um paladar que preza mais o salgado.
Existe o consenso de que em poucos países o desafio da adaptação é tão complexo quanto no Brasil. "Em nenhum dos 175 países em que atuamos é preciso segmentar tanto os produtos", diz Juliana Sztrajtman, gerente de marketing da Johnson & Johnson no Brasil. Isso porque não há algo como um perfil único do consumidor brasileiro. Além das disparidades de renda, é preciso levar em conta os hábitos regionais e a diversidade do clima – coisa que não se vê, por exemplo, em países menores e culturalmente mais homogêneos. No Brasil, até o paladar varia de uma região para outra. Assim, a Nestlé se viu obrigada a inventar três versões de café solúvel – mais concentrado no Sul, intermediário no Sudeste e suave no Nordeste. Em razão de sua diversidade racial, o Brasil ainda reúne dezenas de tipos físicos. Para uma empresa como a L’Oréal, a maior do mundo no setor de produtos de beleza, isso significa produzir uma variedade quatro vezes maior de xampus e condicionadores do que em outros países. Só para cabelos cacheados, há cinco variações. "É tão difícil criar produtos para o mercado brasileiro que, se eles dão certo aqui, têm grande chance de fazer sucesso em outros lugares", diz o francês Olivier Blayac, diretor de desenvolvimento da empresa na América Latina.
O presidente da Unilever no Brasil, Kees Kruythoff: a meta é que o país se torne o segundo mais lucrativo para o grupo
Em meio a crises como a atual, criar produtos ajustados à demanda se torna um imperativo ainda maior. Daí a tendência de que, nesses períodos, o volume de lançamentos aumente – estratégia anunciada, na semana passada, pela operação brasileira da Procter & Gamble. Explica o americano Philip Kotler, considerado um dos maiores especialistas do mundo em marketing: "Com um tremor na economia, as pessoas ficam mais cautelosas e, para convencê-las a comprar, é preciso se esmerar para oferecer o que elas realmente buscam". A crise, portanto, só veio reforçar a prática da segmentação no país. Com a quinta maior população do mundo, a economia estável e o oitavo mercado consumidor mais lucrativo do planeta – que, diga-se, se expandiu 5,4% no ano passado, mesmo sob o impacto da crise –, o Brasil é hoje tido como prioritário pelas empresas globais do setor de bens de consumo. Diz o holandês Kees Kruythoff, que assumiu o comando da operação brasileira da Unilever, no ano passado, com a ambiciosa meta de transformá-la na segunda maior da companhia no mundo. "Para chegar lá, precisaremos criar produtos cada vez mais específicos para os brasileiros". A velha expressão "ao gosto do freguês" nunca fez tanto sentido no mundo dos negócios.
Cada cultura, um sabão
O exemplo do sabão para lavar roupas ajuda a entender por que uma empresa global como a Unilever precisa adaptar um mesmo produto para vendê-lo em diversos países
Brasil (Omo)
Em nenhum outro lugar a espuma é tão abundante – um sinal, para os brasileiros, de que a roupa será bem lavada. A cor azul, outra particularidade local, é associada à limpeza, uma vez que, por muito tempo, se usou no país o anil para alvejar as roupas
Argentina (Ala)
A ausência de espuma é uma adaptação ao tipo de máquina de lavar mais comum no país. Como o aparelho tem uma abertura na frente – e não em cima, como os modelos brasileiros –, a espuma poderia transbordar e estragar o aparelho
China (Omo)
Produz pouquíssima espuma. A ideia é facilitar o enxágue, uma verdadeira obsessão para os chineses, que temem que os resíduos do sabão na roupa causem alergia
Inglaterra (Persil)
A versão líquida domina o mercado inglês e o de outros países europeus. Considerada mais simples de usar e sem deixar pó no chão, adéqua-se bem à realidade de pessoas que costumam lavar a própria roupa
El Salvador (Xtra)
Quase ninguém tem máquina de lavar, daí o sabão ser em barra e redondo – feito para deslizar num tipo de tanque horizontal e sem ondulações, o mais comum no país. Dado o apreço por perfumes na América Central, a concentração deles no sabão é a mais alta do mundo
Veículo: Revista Veja