''Brasileiro não vê que a China não é mais a mesma''

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Claudio Gouveia: vice-presidente do Carrefour na China; Executivo brasileiro do Carrefour na China diz que as mudanças no país oferecem oportunidades "fantásticas" para negócios

 

O supermercado é um dos melhores lugares para acompanhar a espetacular mudança de hábitos de consumo dos chineses, em razão da abertura do país e do crescente poder aquisitivo. Entre os observadores, o brasileiro Claudio Gouveia tem cadeira VIP. Há três anos, assumiu a vice-presidência do Carrefour na China, onde a rede francesa planeja abrir 25 lojas por ano - em 2005 foram 22, um recorde da empresa. Desde que chegou a Pequim, Gouveia viu os chineses começarem a tomar leite e vinho e a comer quantidades crescentes de carne. Com o boom imobiliário, foram à busca de eletrodomésticos e produtos para equipar as casas, além do carro. Dos 90 mil itens vendidos em cada Carrefour, entre 3% e 10% são importados. Nenhum é brasileiro. "A maioria dos brasileiros não percebeu que a China não é mais a mesma. É um mercado em crescimento incrível, com oportunidades fantásticas, só que não é mandar um contêiner que vai dar certo", diz Gouveia, em seu escritório em Pequim. Aos 46 anos de idade e 24 de Carrefour, ele é o único não-francês entre os 80 estrangeiros que comandam a rede na China. Antes, ele esteve em Taiwan, Grécia, México e Brasil. A seguir a entrevista ao Estado.

 

Qual a diferença de cuidar do Carrefour nos diversos países?
Depende do país, da quantidade de lojas e do nível de desenvolvimento do Carrefour. Quando comecei no Brasil, o Carrefour tinha 15 lojas. Quando saí, eram cerca de 60. É um desenvolvimento importante, com abertura de 2, 3 ou até 4 lojas por ano. No México, a proposta era abrir 20 lojas em três anos, em um país novo, onde começamos do nada. Mas, com a desvalorização, os planos mudaram. Na Grécia, o ponto principal era o conflito interno entre o Carrefour e o sócio local, uma situação completamente diferente. Taiwan é um mercado bem maduro. Há poucas aberturas e uma concorrência local muito forte. A China tem um crescimento muito forte, com abertura de 25 lojas por ano, uma grande velocidade de promoção para os gerentes, o que exige formação muito rápida. Na França, um gerente demora cinco anos para passar a diretor. No Brasil, três anos. Na China, entre seis meses a um ano. No ano passado, promovemos 1,6 mil gerentes, de um total de 50 mil funcionários na China. Além disso, nenhuma loja fecha na China, em nenhum dia do ano.

 

Há algo particular na maneira dos chineses irem às compras?
Os clientes costumam ir ao supermercado uma vez por semana, enquanto nos outros países as compras são quinzenais ou mensais. A maioria vai a pé, de bicicleta ou de ônibus. O valor médio da compra é mais baixo, mas a frequência é mais alta. Nas grandes cidades, os clientes começam a ir de carro, mas é uma quantidade bem distante da de países mais desenvolvidos, onde as lojas têm entre 1 mil e 1,5 mil vagas para carros, incluindo o Brasil. Nossas lojas têm entre 300 e 400 vagas, mais para o futuro do que para a realidade atual.

 

O Carrefour foi o primeiro supermercado a chegar aqui, antes da entrada da China na OMC, em 2001. É muito diferente a China de antes e depois do OMC?
Eu estive aqui em 2000 e muitos produtos não eram encontrados. Havia produtos fabricados na China que não eram encontrados na China porque eram destinados exclusivamente à exportação. Hoje, se encontra tudo. Essa ideia de que o produto chinês não tem qualidade é passado. Em uma loja, vemos em torno de 90 mil itens e não temos nenhum problema de qualidade.

 

Como é a relação com o governo?
As pessoas que chegam à China têm a impressão de que é fácil. Vários empresários brasileiros me falam: ?Ah, vou te mandar um contêiner? e você vê se vende. Não é assim que funciona. A China é um país com características diferentes das de outros países. O relacionamento, que é o famoso guanxi, é muito importante. Quando vou encontrar com caras do governo, prefeitos, vice-prefeitos ou caras do partido, o primeiro encontro não é para falar sobre negócios. É para se conhecer e fazer amigos. O governo é respeitado e, quando decide, não se discute. Uma empresa como o Carrefour segue 100% as determinações do governo. Não tem esse negócio de ?eu vou tentar fazer diferente?. Nós estamos em um país comunista e respeitamos as regras do governo.

 

Qual é o porcentual de produtos importados?
Na maioria das lojas, em torno de 96%, 97% dos produtos são fabricados na China. Algumas lojas que estão próximas de expatriados ou de chineses com nível de renda elevado, o porcentual é de 5% a 10%. Mas em 98% das lojas a maioria dos clientes é de chineses que compram produtos chineses.

 

O que mudou nos hábitos de consumo desde que o sr. chegou?
No setor não-alimentício, a maioria não comprava eletrodomésticos e utensílios de casa. Hoje, a parte de eletrodomésticos tem uma venda muito importante. O mesmo ocorre com o segmento de novas tecnologias, como câmeras, celulares, televisões de plasma. Com o desenvolvimento da China, surgiu uma classe média forte, que comprou apartamentos, casas. A partir daí, vai equipar os imóveis. Temos concorrentes, como fábricas de móveis, que têm resultados espetaculares. Em maio, as vendas da Mercedes-Benz tiveram alta de 30% em relação a maio do ano passado. E isso durante a crise - e não estamos falando de um carro barato.

 

E na venda de alimentos, o que mudou?
Os chineses começam a consumir muito mais produtos que não são apenas arroz e macarrão chinês, que não estão ligados às primeiras necessidades. No caso de lácteos, antes não se consumia quase nada.

 

A ideia de que o chinês não come queijo nem toma leite não é mais verdadeira?
Isso mudou completamente. Nas lojas daqui existe sortimento de leite igual ao das grandes lojas de qualquer país. No caso da carne, a de porco representa de 70% a 80% das vendas. A de boi, muito menos, mas o consumo cresceu muito. Antes, eles não tinham dinheiro para comprar. No ano passado, o preço da carne de porco subiu muito. Mesmo assim, o consumo cresceu mais de 40%. Os chineses também consomem bastante carne de frango. O Carrefour realiza uma feira de vinhos, que é outro produto que os chineses tradicionalmente não consumiam. Começamos a fazer a feira há três anos, duas vezes por ano. A cada evento, as vendas crescem em pelo menos 20%.

 

Dos países que exportam alimentos e bebidas para a China quais estão sabendo aproveitar melhor esse mercado?
Vou te responder de outra forma. Por que o Brasil não vende mais na China? Primeiro, a organização da embaixada, que não tem um setor que atue exclusivamente no amparo ao empresário brasileiro. Além disso, muitos empresários pensam que é só mandar a mercadoria que vai vender. Não é assim. Hoje existe uma concorrência muito forte dos produtos chineses. Alguém fala ?vou mandar café?, mas se o café não tiver algo mais em preço, qualidade ou marca, não entra. Há muitas marcas aqui. Tem de vir aqui, ver qual é o posicionamento de mercado, que preço vai vender, como desenvolver a marca, quem vai fazer esse trabalho. O potencial é gigantesco, mas tem de haver decisão da empresa de investir, de conhecer a China. Ainda existe gente que me pergunta se aqui comem cachorro. A maioria dos brasileiros não percebeu que a China não é mais a mesma.

 

No caso de alimentos e bebidas, quais são os países que estão colocando produtos aqui?
Para importar, a China tem de ter acordos comerciais. Não posso importar melão do Brasil se não houver acordo comercial. Os vinhos são principalmente da Europa, a carne,da Austrália e Nova Zelândia e há vários produtos norte-americanos. Mas a maioria deles chega por um distribuidor e são comprados na própria China, não é uma importação direta. Ou essa empresa americana e europeia tem um representante local.

 

Qual o impacto da crise nas vendas?
Aqui há o ano novo chinês, que é como o Natal para nós, mas no qual as vendas são basicamente de alimentos. Até o fim de janeiro, que foi o ano novo, não sentimos quase nada. Em fevereiro e começo de março, as vendas, comparáveis com o ano passado, caíram perto de 5%. A partir de abril, voltaram a crescer no ritmo de 2008.

 

Em 2008, o Carrefour enfrentou um boicote em razão dos protestos na passagem da Tocha Olímpica por Paris. Como foi?
Quando houve o ataque à tocha levada por uma moça em cadeira de rodas, que foi um absurdo, nós encontramos várias pessoas do governo e mostramos que não tínhamos absolutamente nada a ver com o Dalai Lama e o Tibete. E não fizemos nada. Continuamos a trabalhar de maneira séria e responsável. O governo dizia que era um problema político, que o Carrefour é reconhecido como uma empresa forte, francesa, mas que nós continuássemos a fazer nosso trabalho que aquilo iria passar. Foi o que fizemos e hoje ninguém mais fala sobre isso.

 

Veículo: O Estado de S.Paulo


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