Há 20 anos, a Organização Mundial do Comércio (OMC) emitia sua primeira decisão numa disputa comercial. Tratava-se de um caso de grande visibilidade, envolvendo a legislação de um determinado país destinada a preservar a qualidade do ar. Alguns críticos descreveram a decisão como prova de que a OMC sempre colocaria o livre comércio acima da proteção ambiental. Por algum tempo, repetiu-se esse chavão. Mas a jurisprudência da OMC mostra que esses receios não se confirmaram. É importante conhecer esta história ou perderemos a oportunidade de usar o comércio como um aliado do meio ambiente.
Vejamos aquele primeiro precedente, por exemplo. Discutia-se um dispositivo que regulava o nível máximo de poluentes permitido na gasolina. Não estava em questão o fato de que, de acordo com as normas da OMC, cada país tinha — e tem — o direito de regular esse tema. No entanto, no caso em análise, o limite de poluentes era imposto apenas ao produto importado; produtores domésticos estavam autorizados a ultrapassar aqueles parâmetros. A OMC decidiu que esse tratamento diferenciado era uma prática discriminatória e arbitrária, que não era compatível com o próprio objetivo ambiental da medida. Caso a lei tivesse imposto as mesmas restrições a todos os produtores, é razoável supor que a medida tivesse sido considerada perfeitamente legal.
Mais de 500 disputas já foram apresentadas à OMC, algumas envolvendo medidas comerciais com objetivos de proteção ambiental. Qualquer um que deseje ler essas decisões verá que a OMC nunca questionou a proteção ambiental — e, aliás, nem mesmo o poderia fazer à luz das nossas regras. O acordo que criou a OMC em 1994 vincula a organização aos objetivos do “desenvolvimento sustentável” e à “necessidade de proteger e preservar o meio ambiente”. E isso não está escondido numa nota de rodapé — está na página 1, no primeiro parágrafo do nosso acordo constitutivo.
Além disso, as regras da OMC expressamente permitem que os membros restrinjam o comércio quando isso for necessário para preservar recursos naturais exauríveis ou para proteger a saúde humana, animal ou vegetal. A jurisprudência também confirmou que cada país tem o direito de adotar o nível de tolerância ao risco que julgar adequado. Ou seja, é possível adotar padrões de “tolerância zero”, proibindo as importações de um produto, ainda que seu risco para o meio ambiente ou a saúde pudesse ser administrado. Evidentemente, essas medidas não podem ser aplicadas de maneira arbitrária, ou seja, o argumento legítimo de proteção ambiental não pode servir como um mero disfarce para encobrir medidas protecionistas.
Os 20 anos de jurisprudência da OMC mostram que as regras da organização não diminuem em nada o direito de os países adotarem políticas efetivas de proteção ambiental. A relação entre comércio e meio ambiente, no entanto, não termina aí. O comércio pode fazer mais pela causa ambiental.
Neste momento, por exemplo, um grupo de países negocia na OMC um acordo para eliminar barreiras ao comércio de produtos que favorecem a proteção ambiental — como turbinas eólicas, painéis solares e filtros para purificação de água. O comércio pode ajudar a disseminar tecnologias, promover eficiência energética e contribuir para a economia de baixo carbono. Naturalmente, sozinho não resolve, mas com certeza pode ajudar muito se fizer parte de um conjunto adequado de políticas ambientais.
Ocorre esta semana no Rio de Janeiro o Congresso Mundial de Direito Ambiental Internacional, uma interessante oportunidade para tratar da relação entre comércio e meio ambiente. A OMC tem uma boa história para contar nessa área — e ainda há mais a ser feito. Devemos evitar que visões distorcidas ou antiquadas prejudiquem a oportunidade que temos de fazer do comércio um aliado na proteção ao meio ambiente.
Roberto Azevêdo é diretor-geral da Organização Mundial do Comércio
Veículo: Jornal O Globo