Por volta de 1997, fui procurado em meu escritório, onde ainda perdia parte do tempo com engenharia, para participar de uma pesquisa sobre o mercado brasileiro de vinhos. Ao final da longa conversa, a entrevistadora coloca em questão se uma vinícola nacional, até então focada em bebidas de qualidade inferior e pretendendo entrar no setor de vinhos finos, deveria ou não buscar outro nome para lançar seus novos rótulos. Pareceu-me óbvio que associação prejudicaria o futuro produto, sendo recomendável, portanto, não haver tal vínculo.
Não foi esse o caminho adotado pela Salton, empresa que encomendou o estudo. Muito mais do que estratégia mercadológica, a opção escolhida tinha cunho puramente emocional: sólida em termos financeiros e ganhando literalmente muito dinheiro com o Conhaque Presidente, que representava 75% de seu faturamento, era hora de investir em algo que a família se orgulhasse e representasse uma homenagem às gerações anteriores. Manter o nome era imperativo. O mentor dessa empreitada foi Ângelo Salton Neto, presidente da vinícola desde o início da década de 80.
Até chegar a esse ponto, Ângelo teve que arrumar a casa, um tanto estremecida por desencontros familiares. Ficou quem estava com vontade de trabalhar. Fortalecido e confiante, ele foi à luta, tirando proveito de suas virtudes. Era dinâmico, voluntarioso, naturalmente alegre e muito carismático.
A nova fase da Salton começou na segunda metade dos anos 90, primeiro na área de espumantes, para em 1999 entrar com a linha Classic de tintos e brancos. Nesse mesmo ano foi lançada a pedra fundamental da futura sede da vinícola, no distrito de Tuiuty, na Serra Gaúcha, um projeto ambicioso, concebido para centralizar toda a produção de vinhos, além de uma estrutura voltada ao turismo - um circuito completo, dotado de passarelas internas, permite transitar livremente e acompanhar todas as etapas do processo de elaboração, desde a recepção das uvas, vinificação, envelhecimento em barricas, até a expedição. A obra foi concluída em 2004.
Apesar de, comercialmente, os resultados terem surgido com certa rapidez - Ângelo e Wagner Ribeiro, diretor de vendas da vinícola, faziam uma dupla incansável e afinada -, o reconhecimento por parte da crítica demorou um pouquinho mais. Ao menos no que se refere a prêmios. É o que se pode concluir pelas medalhas e menções honrosas conferidas pelo Guia ABS-SP de Vinhos Brasileiros, que, em sua primeira edição, lançada em 2001 (houve apenas mais uma, em 2002/2003), deixou a Salton a ver navios. Isso só deu ensejo a que um novo e elogiável predicado de Ângelo Salton viesse à tona.
Sentado atrás de mim na cerimônia de entrega dos lauréis, realizada na tarde de um dia de semana de dezembro no restaurante Figueira Rubaiyat, em São Paulo, Ângelo, sem demonstrar nenhuma decepção, com um olhar sereno, me disse: "vou me esforçar para merecer um destaque desses no ano que vem". Vale dizer que essa reação é absolutamente inédita e rara em se tratando de produtores brasileiros - há, felizmente, honrosas exceções -, acostumados a se fechar em si mesmos, achando que seus vinhos são melhores que os dos vizinhos. Consideram-se injustiçados e merecedores de melhor classificação. A rigor, eles de recusam a trocar experiências; sem isso há como evoluir.
Com Ângelo era diferente e ele não perdeu tempo. Tanto insistiu que convenceu a diretoria da ABS de São Paulo a visitar a vinícola no Rio Grande do Sul. Acompanhado de Lucindo Copat, competente enólogo-chefe que está na Salton desde 1983, também sempre aberto a escutar e dialogar, levou o grupo para degustar amostras de diversas cubas, interessado na opinião sobre os vinhos. Diante de uma delas que havia se destacado, surgiu a hipótese de engarrafá-la à parte, uma partida separada. Nascia ali a série que mais tarde receberia o nome de Volpi, uma gama superior de produção limitada.
Foi a senha para voar ainda mais alto, criar uma linha de vinhos "premium", aproveitando-se igualmente do que a mamãe natureza generosamente ofertou: as ótimas condições da safra de 2002. Mesmo com a excelente matéria-prima que tinha sido colhida e do vinho que ela havia proporcionado, Lucindo Copat, com desprendimento, sugeriu buscar um consultor para ajudá-lo no ajuste final, tendo como objetivo alcançar o mais alto patamar possível. Foi buscar a consultoria de Angel Mendoza, reconhecido enólogo argentino que tinha sido seu professor na Faculdade de Enologia de Mendoza, a mais importante da área na América Latina - dentro do mesmo espírito, Adriano Miolo, outra cabeça boa do cenário nacional, fez o mesmo algum tempo depois, contratando Michel Rolland.
Da boa parceria entre Copat e Mendoza saiu o Talento, um corte de cabernet sauvignon e merlot, rótulo premiado várias vezes como melhor tinto nacional. Ele só é produzido em anos excepcionais, o que se repetiu, com acréscimos de qualidade em relação ao de estreia (2002), em 2004 e 2005, por enquanto. Fazem parte dessa mesma gama "premium" o espumante Evidence, o 100% merlot Desejo e o Virtude, um belo branco elaborado integralmente com chardonnay.
A aposta em vinhos deu resultado. Sem diminuir a produção, nem perder espaço nas prateleiras, o Conhaque Presidente diminuiu sua participação no volume de vendas da empresa, representando hoje 35%, fatia idêntica à ocupada pelos espumantes, gênero no qual a Salton é atualmente líder de mercado no Brasil. Juntando tudo são comercializadas 45 milhões de garrafas por ano, o que, em termos de faturamento, significou mais de R$ 200 milhões em 2009.
A Vinícola Saltou comemora este ano seu centésimo aniversário. A festa não será completa porque dela não participará seu grande maestro, Ângelo Salton Neto. Semana que vem faz um ano que ele, prematuramente, faleceu, aos 56 anos. Foi dias antes do casamento da filha. Emoção demais? Era, em todo caso, o que ele sempre transmitiu. O mundo do vinho no Brasil vai sempre sentir falta dele.
Veículo: Valor Econômico