Foco global e cortes deixam a InBev amarga para os belgas

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Os trabalhadores da Anheuser-Busch InBev NV que fizeram piquete em protesto contra cortes de vagas no mês passado tinham sentimentos contraditórios em relação a seu empregador, a maior cervejaria do mundo. "Estamos orgulhosos", disse LaurentSacré, de 46 anos. "Orgulhosos e também enojados."

 

Cerveja é uma religião na Bélgica e, como no caso dos católicos em relação à Igreja, os sentimentos aqui em relação à gigante cervejeira combinam uma mistura de amor, medo e dúvida.

 

Os belgas se sentem gratificados por saber que uma empresa originária daqui se transformou por meio de fusões num império mundial cujo faturamento nos primeiros nove meses de 2009 somou US$ 27,4 bilhões. Eles sorvem Stella Artois, Hoegaarden e Leffe e ficam contentes de saber que essas marcas ajudaram a tornar a cerveja belga famosa. Mais de 2.700 pessoas trabalham para a empresa na Bélgica.

 

Mas as tensões cresceram junto com o tamanho da AB InBev. Recentemente, elas transbordaram de maneiras que não se viam antes, maculando a imagem da empresa neste pequeno país de 10,5 milhões de pessoas.

 

A cultura dos "pubs" continua sendo parte fundamental da vida social dos belgas, e a tradição das cervejarias belgas deu mais prestígio às operações da AB InBev ao redor do mundo. Embora a Bélgica represente apenas 1,6% das vendas mundiais da AB InBev, a empresa expressou receio de que um sentimento negativo que emerge em seu mercado doméstico possa ter um impacto sobre a marca global.

 

Na AB InBev, diretores dizem que precisam enxugar as operações num mercado pouco promissor, ao mesmo tempo em que continuam a se promover como "uma empresa internacional com raízes belgas que remonta a 1366", segundo a porta-voz Karen Couck.

 

A cervejaria que se transformou na AB InBev está há muito imiscuída na vida belga. Em 1987, duas das maiores cervejarias do país - uma existente desde a Idade Média - se uniram para formar a Interbrew, com sede a 30 km de Bruxelas, em Leuven, uma cidade universitária medieval.

 

Lançaram assim uma série de fusões e aquisições que depois de 20 anos criou a titã mundial de hoje. Na Bélgica - onde o consumo per capita, de 75 litros por ano, é o sétimo maior do mundo -, ela tem uma participação de mercado de 57,7%.

 

A fusão em 2004 com a AmBev trouxe ao grupo um pelotão de executivos brasileiros focados no corte de custos, especialmente em mercados de cerveja estagnados, como o europeu. Eles adotaram uma nova cultura empresarial, cortando orçamentos de viagem, estabelecendo escritórios mais abertos e adotando um sistema no qual os orçamentos são elaborados a partir do zero todos os anos. A mais recente rodada de aperto de cintos determinou a perda de 10% da força de trabalho de 8.000 na Europa Ocidental, incluindo 263 vagas na Bélgica.

 

A AB InBev tem tentado reduzir sua presença na Bélgica, onde o consumo per capita caiu 19% na década passada, para poder se concentrar nos lucros de mercados em crescimento. Uma tentativa em 2006 de fechar sua cervejaria em Hoegaarden foi abandonada depois que os trabalhadores protestaram, mas em 2007 ela vendeu 90% de sua fatia em 824 cafés e restaurantes belgas.

 

Em resposta aos mais recentes cortes planejados pela AB InBev, os poderosos sindicatos trabalhistas da Bélgica contra-atacaram. Em janeiro, os trabalhadores bloquearam as entradas de três fábricas por três semanas, impedindo que matérias-primas entrassem e cerveja saísse. Políticos e jornais criticaram abertamente a empresa por demitir durante a recessão ao mesmo tempo em que lucrava - mais de US$ 3 bilhões nos primeiros nove meses de 2009. Jean-Claude Marcourt, ministro da Economia da região de Walloon, no sul da Bélgica, disse que estava "escandalizado".

 

Ao contrário do que se noticiou, não faltou no país a Stella, a cerveja mais popular da empresa na Europa, mas muitos bares e bebedores decidiram que não a queriam mais. "Houve uma reação psicológica contra a InBev", diz Jean-Marie Dewandeleer, presidente da associação belga de proprietários de cafés. Segundo ele, os distribuidores lhe disseram que as vendas da AB InBev na Bélgica caíram 30% em janeiro. A empresa negou-se a comentar o número.

 

Alguns anos atrás, Dewandeleer parou de vender cervejas da InBev em seu café The Black Sheep, no centro de Bruxelas. "Eles estavam aumentando demais os preços", diz. Ele se queixa de que a empresa está perdendo sua identidade ao comprar tantas cervejarias estrangeiras e tirar seu foco da Bélgica. "Estamos começando a nos dar conta de que a cerveja belga não é mais belga", diz.

 

A Bélgica tem centenas de sociedades de apreciação de cerveja, e seus membros não estão contentes. Além de louvar as pequenas cervejarias que produzem tipos mais interessantes, elas adotam o etos socialista predominante na Bélgica de que os trabalhadores merecem proteções sólidas. "A comunidade cervejeira belga está ultrajada com a ideia de que você demite pessoas mesmo quando tem lucros", diz Joris Pattyn, autor de "100 Belgian Beers to Try Before You Die" ("100 Cervejas Belgas para se Provar Antes de Morrer"). Há um lado bom, acrescenta. "Esta é uma oportunidade para as pequenas cervejarias."

 

As cervejarias médias também pensam assim. Durante os protestos, a Haacht, uma cervejaria que emprega 450 pessoas e tem vendas anuais de 100 milhões de euros (US$ 139 milhões), atacou a AB InBev numa campanha publicitária.

 

O slogan: "A Haacht é uma verdadeira cervejaria belga, independente e de controle familiar", fazendo referência ao tamanho da InBev e sua diretoria internacional.

 

"Queríamos disseminar a mensagem de que há mais na Bélgica do que apenas cerveja da AB InBev", diz o diretor comercial Luc Vandroogenbroeck. A principal marca da Haacht, Primus, continua atrás das marcas da InBev em vendas.

 

A AB InBev ficou preocupada o bastante com as manchetes geradas pelos protestos para suspender os cortes e renegociar com os sindicatos. Diretores da empresa têm uma reunião programada com líderes sindicais amanhã para discutir uma solução.

 

Especialistas em marca, contudo, dizem que a AB InBev não deveria se preocupar muito. "Num mercado global, gente tem de morrer e tem de haver sangue nas garrafas antes que as pessoas mudem seus hábitos de compra", diz Derrick Daye, sócio-gerente da consultoria americana de marcas Blake Project, de Rochester, Nova York. "A maioria das pessoas não sabe que empresa está por trás de sua marca favorita."

 

Representantes da AB InBev ressaltam que a empresa é dona das três marcas mais populares da Bélgica - Jupiler, Hoegaarden e Leffe - e é uma grande promotora das práticas cervejeiras belgas tradicionais. Por exemplo, a cada ano ela realiza o concurso Stella Artois de chopeiros, que envolve tiradores de cerveja de 25 países.
 

 

Veículo: Valor Econômico


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