Vinho tem muita importância para os judeus. Um primeiro exemplo de como o nobre fermentado faz parte da cultura judaica é a menção a ele quando se fala na fé em um mundo melhor, sem miséria, fome, guerras, nem conflitos. É a aguardada era Messiânica. De acordo com o judaísmo, a chegada do Messias será celebrada com um grande banquete. D´us servirá o Leviatã, o grande peixe do início da criação, e um vinho especial. A bebida será elaborada com as primeiras uvas que o Criador guardou do Éden, quando o jardim sagrado ainda era na terra. Nessa refeição tão aguardada o lugar para o vinho está reservado.
O mesmo acontece em todas as cerimônias judaicas, desde a circuncisão até o casamento, e, obrigatoriamente, há uma benção referente a ele. Está nos Salmos, que "o vinho alegra o coração dos homens", e ao reconhecer e agradecer a D´us pela alegria - pelo nascimento do filho, pelo casamento - vinho é utilizado. No judaísmo a bebida é tão nobre que na mesa ela tem tratamento especial: antes de os judeus comerem há uma benção, como se fosse um pedido de permissão e de agradecimento.
Aliás, cada alimento tem sua benção, frutas inclusive. Contudo, ao se espremer a fruta, o suco obtido desce um degrau na hierarquia, recebendo uma benção de líquido, de água. O único suco que tem uma benção especial, e que não se toma como se fosse água, é o da videira, o vinho, que se recita em todas as cerimônias. É a única situação em que o produto resultante é melhor do que o proveniente da fonte, a matéria-prima. Qualquer refeição judaica começando com pão, é rezada uma benção para ele. Por sua importância, o pão - é tão básico - desobriga fazer as bênçãos dos demais alimentos. Vale para tudo, menos para o vinho. O vinho requer benção específica.
A religião judaica, em sua versão mais ortodoxa, impõe normas para a produção, manuseio e consumo de alimentos, certificados como produtos "kasher". Com vinho não é diferente. No entanto, o que os diferencia não é a qualidade ou estilo, mas simplesmente o processo de elaboração. As uvas e a forma de cultivá-las são praticamente as mesmas de qualquer outro vinho disponível no mercado. As mudanças começam quando os cachos chegam na cantina para iniciarem os preparativos e a fermentação propriamente dita. Apenas pessoas que observam as leis da religião podem manuseá-las, assim como o equipamento, que deverá ser previamente higienizado se porventura foi utilizado para vinhos "comuns". Não são igualmente usados quaisquer produtos de origem animal dentro da cantina ou que não tenham o certificado kasher. A supervisão, até o engarrafamento, deve ser feita por um rabino responsável.
O status de kasher estende-se até o serviço do vinho, devendo a garrafa ser aberta e servida por pessoal estreitamente alinhado com as leis da religião. A garrafa só pode ser manuseada por outra pessoa enquanto estiver fechada. A menos que seja utilizado no processo, além de todos os passos iniciais, uma forma mais invasiva, no que diz respeito ao líquido: sua pasteurização. O vinho, submetido por segundos a temperaturas perto dos oitenta graus centígrados, é liberado com a denominação "mevushal", o que é mencionado no rótulo. Mesmo com técnicas modernas de cozimento rápido, a chamada "flash pasteurização", o vinho perde boa parte de suas características originais.
Diante da demanda, vinícolas de renome por vezes destinam parte da colheita para a produção de vinhos kasher, mevushal e/ou não. É o caso de bons châteaux de Bordeaux, como Clarke, Labérgorce Zédé, Montviel, e casas de champagne, como a Laurent Perrier, o mesmo acontecendo em outras regiões mundo afora. Para tanto, o vinho kasher é normalmente produzido depois de terminada a elaboração da bebida base da vinícola, ocasião em que entra o rabino responsável pelo acompanhamento do processo e sua equipe.
No fundo, a iniciativa de produzir vinhos kasher "bebíveis" veio de fora de Israel. A imagem do vinho israelense sempre foi a de um tinto adocicado, o que data, aliás, desde os tempos bíblicos. Pode-se até supor que isso seja conseqüência da alta concentração de açúcar nas uvas por força do clima quente e seco da região. Numa época em que não se tinha controle sobre o processo de vinificação, nem todo o açúcar se convertia em álcool, resultando num vinho doce e de teor alcoólico relativamente baixo.
Os tempos mudaram. Israel, que vive hoje dias "mais calmos" - para quem estava acostumado com guerras e bombas para todo lado - e tem uma economia altamente desenvolvida, viu a cultura do vinho crescer de forma acelerada, sobretudo nos últimos dez anos. Surgiram várias vinícolas-boutique focadas em qualidade, comandadas por enólogos formados em escolas estrangeiras de primeira linha, com estágio em produtores de prestígio. A propósito, essa nova leva não produz apenas vinhos kasher. Embora boa parte dos envolvidos na produção observe as leis da religião, não contrariando, portanto, os princípios básicos para obter a certificação, ela depende da supervisão de um rabino. E isso custa. Algumas não têm porte para pagar.
A aceitação dos consumidores provocou profundas transformações no panorama local. Tanto que um dos pioneiros da vitivinicultura local, o poderoso grupo Edmond de Rothschild (como pessoa física é acionista de porte do Château Lafite), que era responsável por mais da metade da produção local, abandonou sua filosofia de vinhos correntes, investindo em rótulos de bom padrão (sua participação baixou para menos de 30%). Outra parcela importante da produção vinícola de Israel, calcada num conceito coletivista, como um kibutz, também teve que deixar de lado a produção de vinhos comuns para se adaptar a uma nova realidade de mercado.
A rigor, o país tem potencial para produzir bons vinhos: está situado entre os paralelos 30 e 35, tem clima mediterrâneo e uma topografia diversificada, que permite identificar distintos terroirs. As zonas de destaque são: ao norte, as Colinas de Golan (território anexado e motivo de conflitos com a Síria) e a região da Galiléia; a faixa costeira entre Haifa e Tel Aviv; a área montanhosa da Judéia, a oeste de Jerusalém; e trechos do deserto do Neguev, ao sul.
A área plantada cresceu acentuadamente da segunda metade da década de 90 para cá, chegando hoje a quatro mil hectares - 15% dos vinhedos da Borgonha. Supre, com folga, o consumo interno. A maioria, então, dos projetos está voltada para a exportação. E não visa apenas a colônia judaica, espalhada pelos quatro cantos do planeta. A expectativa é participar do mercado internacional, "sem preconceito de raça, credo ou cor".
O Ano Novo judaico começa no anoitecer da próxima segunda-feira, dia 29. Shaná Tová para todos. Com bons vinhos. LeChaim (saúde, ou, mais especificamente, à vida, em hebraico).
Veículo: Valor Econômico