Em Rioja, Telmo Rodríguez quer reproduzir um vinho clássico tão radical que nunca existiu
Numa conversa com o enólogo ambulante Telmo Rodríguez até de vinho se fala. A frase parece ambígua, tratando-se de um produtor famoso da bebida, mas o ex-menino atrevido da vinicultura ibérica tem interesses bem mais amplos que os detalhes técnicos da produção.
Na visita anterior ao Brasil, quatro anos atrás, seu assunto predileto era a fluidez. "Quero vinhos fluidos, fáceis de beber, descomplicados", dizia. E se estendia longamente sobre o conceito de facilidade e sedução nos vinhos. Agora isso acabou: "Com o Basa, vinho branco que faço em Rueda, atingi esse objetivo."
Criado numa das mais bonitas propriedades da Rioja alavesa, a parte norte da Rioja que fica dentro do País Basco, a Granja Nuestra Señora de Remelluri, filhinho de papai, Rodríguez foi jogado diretamente nos labores duros da enologia. "Meu pai comprou Remelluri como um capricho. Mas fui para Bordeaux estudar. Trabalhava o tempo todo, às vezes dormia ao lado dos tonéis no período da fermentação, para não me descuidar de nada." Voltou e acabou se desentendendo com o pai sobre os rumos da propriedade, algo que ainda não gosta de comentar, coisa de temperamentos bascos. "Eu não estava feliz lá, só isso."
Passou a viajar pela Espanha e procurar vinhedos perdidos, esquecidos. "A pior história aconteceu na Ribera del Duero, desanimei de lá. Um prefeito tinha passado um buldôzer em cima de um vinhedo antiquíssimo e plantado um novo. Parecia um daqueles cemitérios da Normandia, as videiras fincadas como cruzes em espaços regulares." Mas houve surpresas, como a história do Molino Real, um vinhedo quase centenário em Málaga. "Conversei com as pessoas mais velhas do lugar, queria saber como era feito o vinho ali. Não queria ouvir da crítica um 'que vinho bom'. Buscava a frase que ouvi dos antigos: 'Parece o vinho que eu bebia'."
Claro que o comentário do crítico inglês Hugh Johnson não foi desprezado. "O Hugh é importante, ele é sincero. Quando disse que ao beber o Molino tinha visto o fantasma do Mountain Wine que tomara, comprado em leilão da coleção do Duque de Wellington, acho que equivalia ao que diziam meus velhinhos de Málaga: que fui bem-sucedido na recriação de um sabor perdido no tempo."
E agora que não é mais atrevido, ou só um pouco malcriado, como ele mesmo se intitula, qual o projeto? "Finalmente vou ter um lugar. Sempre usei instalações precárias e nômades, nunca tive uma vinícola. Minha meta atual é reproduzir um Rioja clássico, mas muito anterior ao que chamamos assim hoje em dia." Inventar um passado? Ele ri do comentário, pois de certa forma está tentando criar um Rioja tão radical que nunca existiu, e vai parecer o mais autêntico. "Estou plantando um vinhedo, chamado Las Beatas, como antigamente, tudo misturado, as variedades em co-plantação, colhidas juntas. E a vinícola toda em adobe, só barro. Como sempre foi, ou deve ter sido ... antes, muito antes."
"Agora estou atrás da sofisticação do simples." Uma utopia vinícola: "Minha vinícola não vai ter sala de degustação, restaurante. É para comer um bom jamón e pão e tomar vinho. O projeto é constituir a tradição como luxo."
Veículo: O Estado de S.Paulo