Para Ricupero, aceitar protecionismo argentino é um erro

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O ex-ministro da Fazenda e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), Rubens Ricupero, criticou a falta de coerência do Brasil ao ameaçar abrir um painel contra os Estados Unidos na Organização Mundial do Comércio (OMC), por conta de medidas protecionistas, mas poupar a Argentina. "O Brasil deve fazer esse papel preventivo para desestimular o protecionismo, mas tem que ser aplicado a todos. Se for seletivo, enfraquece", disse ao Valor. 
 


Para Ricupero, as barreiras argentinas são "protecionismo direto", o mais nocivo ao comércio. Com a crise, o país ampliou a lista de produtos brasileiros sujeitos a licenças de importação. No caso dos EUA, o Brasil criticou a cláusula Buy American do plano do presidente Barack Obama, que prevê a compra de ferro e aço locais para obras públicas. "As pessoas ficam indignadas, mas é meio fajuto, porque o Brasil não é um padrão de conduta em compras governamentais." 

 

Um dos maiores especialistas em relações internacionais do país, Ricupero comandou a Unctad entre 1995 e 2004 e foi um dos principais negociadores do Brasil na Rodada Uruguai. Ele aplaudiu a atitude do Itamaraty de se posicionar contra o protecionismo, mas ressaltou que o país não pode ceder a tentações. "O Itamaraty está agindo bem, mas é preciso que o resto do governo dê condições para os diplomatas serem levados a sério internacionalmente." 

 

Ricupero refere-se às licenças não-automáticas de importação, aplicadas e retiradas dias depois pelo Brasil em um episódio conturbado. "Não estou convencido de que foi um funcionário de meio escalão enquanto ministros viajavam. Fui ministro da Fazenda e sei que as coisas não acontecem assim", disse. Para Ricupero, que hoje é diretor da Faculdade de Economia da Faap, o país deve se preocupar mais com aumento de tarifas do que com pacotes de subsídios. Ele considera um exagero falar em onda de protecionismo no mundo, porque os casos ainda são poucos. "O mundo aprendeu a lição dos anos 30", acredita. A seguir, trechos da entrevista. 

 

Valor: Por conta da crise global, vários países tomaram medidas protecionistas. O senhor acredita que isso coloca em risco o processo de abertura dos mercados? 
Rubens Ricupero: Não chega a isso, porque até agora os sinais de protecionismo efetivo não são muitos, nem de grande importância. Não houve nada comparável a adoção, nos anos 30, pelos Estados Unidos, de uma nova lei que elevou as tarifas de importação de praticamente todos os produtos. Nos EUA, o mais notável hoje é essa iniciativa do Congresso sobre o aço e o ferro. Existem outros casos parecidos na Índia e na Argentina, mas não se pode dizer que haja uma onda mundial. Tanto é assim que a seção que a OMC dedicou ao assunto teve muitas advertências, mas poucas denúncias concretas. O que se pode dizer, portanto, é que o perigo existe, é bom que haja uma mobilização para evitar que se agrave, mas é também sensato guardar um senso de proporção, porque, em termos efetivos, até o momento, não há nada irreversível. O que houve nos anos 30 foi uma guerra comercial geral, que é praticamente impossível de acontecer hoje por uma razão simples. Na década de 30, não havia nenhum compromisso mandatório para os países. Não havia na época nada equivalente ao antigo Gatt e à OMC. Para repetir o que ocorreu na Grande Depressão, seria preciso demolir uma parte considerável do que se construiu ao longo de 60 anos, inclusive compromissos jurídicos assumidos e aprovados pelos congressos. 

 

Valor: Na OMC, os países discutiram se os pacotes de combate à crise seriam subsídios. A União Europeia disse que é preciso reaquecer a economia e que os outros países se beneficiariam depois com a recuperação das importações. O embaixador do Brasil, Roberto Azevedo, respondeu: "Deem o nome que quiserem mais ainda é subsídio." Como o senhor avalia essa discussão? 
Ricupero: É preciso distinguir as coisas. Protecionismo é a adoção de barreiras tarifárias ou quantitativas à importação de bens e serviços com intuito de favorecer a produção nacional. Um exemplo é a instituição de licenças não-automáticas que disfarcem medidas contra as importações. Protecionismo clássico é que o Brasil tinha antes de 1990, com um arsenal de tarifas muito altas e o anexo C da Cacex. Muitas vezes se usa a expressão protecionismo num sentido amplo para designar também medidas que favorecem a indústria nacional com exclusividade e, portanto, distorcem o comércio. A rigor tem razão o Roberto Azevedo: qualquer programa de estímulo a setores industriais, inclusive os nossos, pode causar distorções nas regras de comércio. Agora há uma distância entre dizer isso em tese e contestar, no momento de uma grande crise econômica, medidas de socorro a empresas que empregam milhões de indivíduos. O que é juridicamente concebível pode não ser politicamente possível. Se a única maneira de manter o emprego de mais de 2 milhões de americanos forem os subsídios dados à indústria automobilística, acho muito difícil que qualquer contestação na OMC leve o governo dos EUA a abrir mão disso e pode haver até o perigo de pôr em questão o compromisso desse país com as regras comerciais. É preciso julgar se está nos prejudicando efetivamente. De certa maneira, o argumento europeu pode ser verdade, porque ajuda a promover a recuperação e a manter um nível de demanda de importações. É preciso verificar cada caso. Boa parte dos produtos siderúrgicos brasileiros está debaixo de direitos antidumping e compensatórios. Foi isso que conduziu o Jorge Gerdau a comprar siderúrgicas nos EUA. O mesmo aconteceu no suco de laranja. Foi uma forma dos brasileiros contornarem o problema, mas criando empregos lá e não aqui. Pode ser até que o Gerdau não seja afetado pelo Buy American, porque o aço dele é americano. 

 

Valor: O que é mais preocupante para o Brasil: os subsídios dos pacotes ou o aumento de tarifas? 
Ricupero: A curto prazo, é o protecionismo direto, porque nos atinge em um momento em que o comércio mundial encolheu, o que torna mais difícil encontrar alternativas quando um mercado se fecha. No subsídio, sempre é possível o governo tentar encontrar maneiras de compensação, como temos feito com linhas de crédito estimulando vendas de automóveis. O protecionismo direto é terrível. Um caso típico: estamos perdendo boa parte do mercado de carne suína na Rússia e não tem muito para onde vender. O dano é imediato e contundente. Pior que o aumento de tarifas é a barreira quantitativa. Durante muitos e muitos anos, o grande esforço das negociações comerciais foi acabar com as barreiras quantitativas. 

 

Valor: O senhor vê espaço para o Brasil processar os EUA na OMC por conta do Buy American? 
Ricupero: É importante para um país como o nosso, que pode ser afetado por medidas protecionistas, ter coerência de comportamento. E hoje existem problemas. No caso do dispositivo americano, não somos signatários - e com razão, não sou favorável - ao código de compras governamentais, que surgiu na Rodada Tóquio. Não devemos ser, porque ainda precisamos do poder de alavancagem do Estado para consolidar setores que não têm condições de concorrer no exterior. O Brasil fez bem. A China e a Índia também não fazem parte. Mas é duvidoso que o Brasil tenha autoridade para contestar que outro país dê preferência aos seus fornecedores, porque isso é amplamente utilizado aqui. A Petrobras dá preferência à indústria nacional em suas encomendas. É claro que podemos alegar que um dos princípios básicos do acordo geral é a não-discriminação. Mas é genérico, e fica muito difícil ganhar um painel nessa base. É preciso dizer isso, porque as pessoas ficam muito indignadas, mas é uma indignação meio fajuta, porque o Brasil não é um padrão de conduta nessa matéria. O argumento deles é o mesmo que o nosso: se o dinheiro é do governo, porque favorecer um fornecedor de fora? 

 

Valor: Qual é a mensagem do Buy American para o mundo, ainda mais vindo de Obama, um presidente que se elegeu com a promessa do multilateralismo? 
Ricupero: É preciso ver como Obama vai justificar isso. Pode ser com essa frase que só aplicarão de maneira consistente com as obrigações americanas nos acordos internacionais. Em princípio, é um fato negativo vindo do país que é o guardião do sistema multilateral do comércio. A expectativa do Obama é multilateralista, mas, em matéria de comércio, ele nunca foi um entusiasta. O clima que havia na época do Bill Clinton desapareceu. Não há ambiente para retrocesso, mas há pouco entusiasmo para avançar nesse campo. 

 

Valor: O Brasil adotou licenças de importação, mas desistiu. Também é falta de coerência? 
Ricupero: Aquela medida nunca perfeitamente explicada criou uma inquietação. Não estou convencido que foi um funcionário de meio escalão enquanto os ministros viajavam. Fui ministro da Fazenda e sei que essas coisas não acontecem assim. É um ato de tal gravidade, que faz nascer uma certa inquietação nos dois sentidos. Se não era necessário, mostra ligeireza em tratar desse assunto. Ao mesmo tempo em que o Itamaraty se torna o campeão das denúncias, como o Brasil faz uma coisa dessas? Por mais que tenha sido cancelado, todo mundo registrou o fato. No outro extremo, se existe alguma razão que não conhecemos para a medida, preocupa. Será que o governo sabe de algo que não sabemos e vai haver um problema terrível no comércio exterior? Acho que o Itamaraty está agindo muito bem, mas é preciso que o resto do governo dê condições para os diplomatas serem levados a sério internacionalmente. O Brasil protestou e até o ministro Celso Amorim se manifestou no caso do Buy American, mas, no caso da Argentina, não tenho visto nada. As medidas argentinas são destinadas diretamente contra produtos brasileiros e curiosamente estamos aceitando isso. 

 

Valor: Existe uma inquietação em setores do governo e no meio empresarial em relação ao protecionismo da Argentina. Como isso pode afetar as relações entre os dois países? 
Ricupero: O que posso presumir é que devido a motivos políticos, como a importância das relações com a Argentina e a prioridade ao Mercosul, o governo está disposto a aceitar coisas que não aceitaria de outros. No momento atual, a esperança do comércio exterior está nos países afetados menos duramente pela crise como China, Rússia, Argentina. Se esses países começarem a adotar barreiras, vai agravar o encolhimento do saldo comercial brasileiro e das contas correntes, porque não haverá alternativas. Não se sabe quando a demanda vai se recuperar nos EUA ou na Europa. Nesse momento, o protecionismo da Argentina é muito prejudicial e o assunto pode ser tornar mais sensível. 

 

Valor: Com a paralisia da Rodada Doha, o combate ao protecionismo se tornou uma nova bandeira da política externa brasileira? 
Ricupero: Não é uma nova bandeira, porque está ligado à Rodada Doha. A meu ver, merece aplausos. O Brasil deve fazer esse papel preventivo para desestimular o protecionismo, mas tem que ser aplicado a todos. Se for seletivo, enfraquece. Outros dirão: vocês conosco falam isso, mas com a Argentina é outra coisa. É preciso coerência para ter mais efetividade. Não acho provável que os prognósticos mais pessimistas sobre a crise se confirmem, mas se caminharmos para três, quatro anos de crescimento baixo ou contração, vai ser inevitável um aumento do grau de proteção ao emprego. Como disse no início, até agora os episódios não são tão numerosos ou danosos. É um exagero dizer que é uma onda, mas o perigo é se a crise a profundar e durar muito tempo. 

 

Valor: Por que o senhor acha improvável uma crise mais longa? 
Ricupero: Por conta das medidas adotadas nos EUA, ainda confio que em algum momento de 2010 comece uma recuperação. Mas não escondo que digo isso mais com esperança do que com convicção, porque sei que há analistas de grande qualidade que são pessimistas, que acham que há uma chance alta de a crise ser maior do que se espera. No Brasil, vai depender dos setores, porque a crise não é estrutural, mas cíclica. Alguns setores sofrem mais do que outros. Mesmo a indústria automobilística não consegue vender caminhões, mas ainda há fila para carros populares. Vai haver problema nos setores que começarem a perder mercado no exterior e, ao mesmo tempo, sofrerem com a concorrência de produtos estrangeiros favorecidos por benefícios tributários. A China aumentou a devolução de impostos para cerca de 5 mil produtos. É claro que esses setores vão procurar obter uma proteção contra a invasão. Mas não é protecionismo, é defesa comercial. Se houver prova, é lícito que nos defendamos com as armas que estão a nosso dispor. 

 

Valor: O senhor vê o risco de uma enxurrada de processos na OMC? Ou todos neste momento têm telhado de vidro? 
Ricupero: Acredito mais na segunda alternativa, não tanto pelo telhado de vidro, mas porque, em momentos muito graves como este, há uma tendência de evitar abrir frentes de hostilidades a não ser que sejam casos muito notórios de prejuízo. Há um pouco daquela atitude que as pessoas, embora lamentem e saibam que é um erro, compreendem que a situação é complicada. A meu ver, o que vai haver mais é esse tipo de sessão com advertências, para desestimular o protecionismo, do que uma guerra judiciária. 

 

Valor: O avanço do protecionismo coloca em risco a OMC ou reforçam o papel da entidade? 
Ricupero: Reforçam o papel, porque a grande diferença entre o momento atual e os anos 30 é a existência da OMC. Nos anos 30, não havia um regime internacional jurídico que obrigasse os países a resistirem ao protecionismo comercial. É claro que tudo pode desaparecer, mas não chegamos a esse ponto. As instituições de Bretton Woods, como o FMI e o Banco Mundial, não estão sendo contestadas. Ao contrário, o que se quer fazer no G-20 e em outros fóruns é aumentar a capacidade de empréstimo do fundo monetário. Aprendeu-se a lição da crise dos anos 30. O que pode acontecer é retardar mais a conclusão da Rodada Doha, porque exige sacrifícios que são mais difíceis em momentos de crise. Os países desenvolvidos exigem a redução das tarifas industriais. A Índia e a Argentina não aceitavam isso antes, imagine agora. Da mesma forma, os ricos não querem reduzir os subsídios agrícolas. Fica mais difícil fechar a Rodada a não ser que haja uma baixa geral de nível de ambição. 

 

Veículo: Valor Econômico


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