No fantástico mundo da parcela

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Lojas dizem vender a prazo sem juros, consumidores fingem acreditar e pagam taxa mesmo comprando à vista

 

Ao comprar produtos mais caros, como eletroeletrônicos, móveis e roupas de grife, muitas vezes o consumidor é tentado por uma condição de pagamento que parece muito boa: o parcelamento "sem juros".

 

Essa forma representou, no primeiro semestre, 48,9% das compras no cartão, contra 37,8% no mesmo período de 2004, de acordo com pesquisa da Itaucard, administradora de cartões de crédito do banco Itaú. Informar o comprador de que há uma tarifa no parcelamento está fora de moda. Só que a estampa "sem juros" não combina com um país que tem uma das taxas de juros reais mais altas do mundo.

 

As peças se encaixam quando se sabe que, no preço à vista, há juros embutidos. O problema é que isso viola de uma só vez três artigos do CDC (Código de Defesa do Consumidor).

 

Primeiro, porque esconder juros no preço final caracteriza propaganda enganosa, o que é vetado pelo artigo 37 do CDC. "É uma oferta enganosa. Não existe maneira de a loja vender a prazo sem juros. É uma prática abusiva e deveria ser corrigida", afirma Arthur Rollo, 33, advogado especialista em direito do consumidor. "Vender sem juros não é possível. A nossa explicação é que há juros embutidos", diz Marcos Diegues, advogado do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor).

 

Direito de saber

 

O artigo 52 do Código diz que, no fornecimento de produtos ou serviços que envolva concessão de financiamento, o consumidor tem direito de saber qual o montante de juros e qual a soma total a pagar com e sem financiamento. Para Rafael Paschoarelli, professor de finanças do Ibmec-SP (Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais), ao omitir que existe financiamento, a loja faz ainda uma "venda casada", o que também é proibido pelo artigo 39 do Código. Essa infração acontece quando o consumidor que quer comprar uma mercadoria se vê obrigado a pagar também por outra.

 

Ao pagar o preço à vista sem desconto, com juros embutidos, o consumidor não tem opção: leva sem querer e sem precisar um serviço (crédito) com o bem que ele de fato deseja. A pessoa nem sequer vê o que está levando. E, quando vê, para não sair perdendo, é obrigada a parcelar e, assim, pelo menos usufruir do serviço pelo qual ela vai ter que pagar de qualquer maneira.

 

Se essa prática fosse interpretada por um juiz como "venda casada", as implicações seriam mais graves. "O raciocínio é correto, mas eu não iria por esse lado da venda casada, porque é mais difícil de provar. Pela lei, a loja não pode oferecer crédito, então ela poderia dar outro jeito de explicar. Pelo argumento da oferta enganosa, não tem saída", explica o advogado Arthur Rollo.

 

O modo de embutir juros no preço à vista varia de loja para loja. A prática mais comum é uma compra triangular consumidor-loja-financeira.

 
 
Escape dos juros invisíveis

 

Em meio ao tiroteio cada vez mais disseminado de facilidades na compra a prazo, o consumidor tem poucas saídas. A melhor delas é boicotar as lojas que o enganam ou insistir para obter do lojista o preço mais próximo do valor real à vista. "O fundamental é pesquisar, recortar anúncios, levar as ofertas para os concorrentes e pedir reduções, fazendo um leilão reverso. E ainda pedir preço com desconto à vista", diz Carlos Alberto Ercolin, diretor de economia da Anefac.

 

Mas, como cada vez mais pessoas exigem a opção de pagar no maior número de prestações possível sem juros, são raras as lojas que parcelam e mostram os juros cobrados.

 

Uma delas é a loja virtual da Fast Shop, que encontrou uma forma de atrair o consumidor que gosta de parcelar, sem enganá-lo. Em seu site, é anunciada uma TV em "10 vezes iguais no cartão" e, embaixo, aparece o preço à vista, 10% mais barato. Na mesma página, a tabela de formas de pagamento mostra que "na compra deste produto no cartão de crédito em parcelas com juros, é cobrada uma taxa de 1,99% ao mês". Nos anúncios impressos da Fast Shop, porém, segue a prática de dizer que a venda é dividida em dez vezes "sem juros".

 

Outras redes dizem vender "sem juros", mas pelo menos dão desconto à vista. No Ponto Frio, a mesma TV sai com desconto de 10% à vista e o anúncio é claro. Outras lojas dão desconto, mas só se o consumidor pedir. No Magazine Luiza e no Extra, a redução é de 5% e, na Americanas, 2%. No Carrefour e na Casas Bahia, oficialmente não tem desconto à vista pré-estabelecido, mas dá para negociar reduções (no preço à vista).
Sem essa referência do preço à vista, o poder de barganha de quem compra é menor. No Submarino, no site da Fnac e no Wal-Mart não há desconto. Se o consumidor for comprar nessas lojas, o melhor é fugir do preço à vista, mesmo se houver um pequeno desconto, e pagar pela mercadoria no máximo de parcelas oferecidas, sabendo que está pagando juros.

 

"Para a loja, o melhor cliente é o que paga à vista e sai contente com um pequeno desconto ou sem desconto nenhum. Primeiro, porque ela lucra com os juros embutidos e, depois, porque consegue financiar seu capital de giro -isto é, suas despesas normais- com dinheiro à vista", diz Ercolin.

 

De acordo com o Procon, não há nada que o consumidor possa fazer. É difícil provar que há tarifa embutida no preço, justamente porque não dá para saber o que é juro e o que é margem de lucro. "Por liberalidade, ele pode dizer que não está cobrando juros. Não existe ação julgada no Brasil que tenha feito o lojista explicar como ele consegue vender sem juros", diz Renata Reis, técnica de proteção e defesa do consumidor do Procon-SP.

 

O advogado Arthur Rollo discorda. Para ele, de fato, ações individuais têm poucas chances de sucesso, mas uma ação coletiva, movida em conjunto pelo Ministério Público e pelo Procon tem chances de ser acatada por um juiz. "O argumento econômico é suficiente para o argumento de oferta enganosa ser aceito. Nesse caso, inverte-se o ônus da prova e o lojista vai ter que se virar para explicar em juízo como ele consegue não pagar juros. Se não conseguir, vai ter que suspender a prática", afirma Rollo. Mas, para isso acontecer, os consumidores devem reclamar junto a esses órgãos.

 

Já na opinião de Rafael Paschoarelli, professor de finanças do Ibmec-SP, quem deveria coibir as cobranças de juros embutidos é o Banco Central, que executa as diretrizes do CMN (Conselho Monetário Nacional). De acordo com a lei 4.595/64, é o Conselho que deve "disciplinar o crédito em todas as suas modalidades e as operações creditícias em todas as suas formas".


 
Como funciona o mundo de faz-de-conta
 


Imagine que você comprou um computador em dez parcelas, por R$ 2.000. A loja recebe da financeira, à vista, R$ 1.700. Esse seria o preço real à vista, já com a margem de lucro. A instituição de crédito recebe, a prazo, os R$ 2.000 que você deve pagar e lucra R$ 300 ao final de dez meses. E você levou, com o crédito, um bem de R$ 1.700, e não de R$ 2.000, como supôs.

 

"Em vez de oferecer o desconto a quem paga à vista, a loja prefere contratar uma financiadora, que, em alguns casos, pertence à própria loja. Tira-se dinheiro de um bolso para pôr no outro", diz Rafael Paschoarelli, professor de finanças do Ibmec-SP. Ele critica a confusão entre as atividades da economia real e as financeiras. "Tem empresa que deveria fazer frango empanado e está especulando com o câmbio. Tem loja que deveria vender móvel, mas vende crédito."

 

"A gente vive no mundo do faz-de-conta. Como é possível vender sem juros ou com juros abaixo das taxas de mercado? Ou a loja rasga dinheiro ou eles estão embutidos", diz Paschoarelli, segundo quem é "desleal" dizer que o juro é zero.
O parcelamento sem juros é um chamariz. "A pessoa sai de casa para gastar R$ 500 num jogo de sala e acaba gastando R$ 1.000 em suaves prestações", diz Carlos Alberto Ercolin, 48, diretor-executivo de economia da Anefac.

 

Mas não existe almoço grátis. Alguém sempre paga -ou deixa de pagar: a inadimplência, entre janeiro e setembro, cresceu 7,6%, segundo dados da Serasa.

 

Transparência

 

O caso de juros embutidos fica mais claro quando se compara como as compras são feitas em lojas estrangeiras e em suas filiais daqui. Por exemplo, no site de uma cadeia varejista na França, ao colocar um produto no "carrinho" e ir para o "caixa", a opção de parcelar não é oferecida de cara. Para isso, você deve se tornar "sócio" da loja e pagar uma anuidade que dá direito a vários benefícios. E se o "sócio" decide parcelar, ele arca com a "Taxa Efetiva Global" (TEG). O site simula o crediário e mostra quanto o consumidor pagaria a mais.

 

"É isso que deveria acontecer aqui. E nem precisaria de legislação nova", diz o advogado especialista em direito do consumidor Arthur Rollo. Já no site da filial brasileira, o consumidor pode pagar uma TV em até 12 vezes "sem juros".
"Enquanto houver consumidores que aceitam pagar juros embutidos, isso vai continuar", afirma Ercolin.

 

O que dizem representantes do comércio

 

Sobre a prática comercial de oferecer parcelamento sem juros, o economista Marcel Solimeo, da Associação Comercial de São Paulo, afirma: "Em qualquer modalidade que você postergar o pagamento, há um custo. Em parte, os custos podem estar embutidos, e, em parte, estão no prazo de pagamento que os lojistas obtêm com fornecedores, e que é repassado ao consumidor". Solimeo não vê problema legal em anunciar juro zero: "Não há lei que proíba. O que importa é que haja opção. É uma forma de apresentação. É uma questão de concorrência. É uma forma que as lojas pensam poder atrair o consumidor", afirma.

 

A FIC, financeira ligada ao grupo Pão de Açúcar (Extra), afirma que nas vendas parceladas não há uma operação de crédito e que o negócio é apenas entre a financeira e a loja. "O consumidor paga em 12 vezes para a gente, e nós repassamos o valor integralmente para a loja", diz Luis Fernando Staube, presidente da FIC. Ele afirma que a financeira ganha uma pequena comissão de "interchange", mas que a operação não é interessante para sua empresa, que ganharia mais financiando com juros. "Mas é como o mercado atua", diz. Segundo ele, é possível vender produtos sem juros a prazo. "Na verdade, houve compressão da margem de lucro. É o varejo que arca com o custo", diz Satube.

 

Mas, com a crise atual, diz ele, o custo do crédito deve aumentar, e as ofertas desse tipo devem ficar mais raras.

 

De acordo com a multinacional norte-americana Wal-Mart, o parcelamento sem juros é ditado pelo mercado. "É a forma que o negócio é feito no Brasil. É cultural", diz Carlos Fernandes, vice-presidente da divisão de especialidades da rede varejista.
O representante do Wal-Mart, que não dá desconto à vista, critica as lojas que adotam essa prática. "É uma questão de coerência. Se você diz que é sem juros, não pode dar desconto à vista", diz.

 

Já a Fnac afirma que há custo de parcelamento, mas que isso não é repassado. "Nosso principal feito é a negociação com fornecedores. O custo é dividido entre a gente e os fabricantes", diz Benjamin Dubost, diretor comercial da Fnac Brasil. Ele afirma, ainda, que é pequena a proporção de produtos vendidos a prazo.

 

Procuradas pela reportagem da Folha, as lojas Magazine Luiza, Fast Shop, Submarino, Americanas.com, Carrefour, Ponto Frio.com e Casas Bahia não se pronunciaram sobre o assunto.

 

Veículo: Folha de S.Paulo


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