Para supermercados, o sonho de ser global ficou mais distante

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À beira de um deserto na Califórnia, entre Los Angeles e Palm Springs, trabalhadores de macacão branco e redes nos cabelos lavam salada, cozinham molho de macarrão em grandes tambores, fazem rolinhos de sushi e sanduíches. Equivalente, em tamanho, a pouco mais de 100 quadras de tênis, a linha de produção em Riverside é de propriedade do Tesco, terceira maior rede de supermercados do mundo em vendas - cuja sede fica no Reino Unido, mas acalenta ambições internacionais.

O Tesco queria oferecer à clientela americana alimentos preparados frescos, mas temia não poder obter todos os itens adequados junto a produtores locais. Por isso, a companhia rompeu com uma tradição de 90 anos e passou a operar em manufatura. Ao fazer isso, pôs em evidência uma das dificuldades no caminho da ambição de executivos do setor de supermercados de ter uma operação verdadeiramente mundial.

Hábitos de consumo podem estar convergindo, à medida que consumidores em mercados emergentes imitam os ocidentais - aderindo às roupas Zara e mobiliário Ikea. Mas quando se trata de satisfazer as necessidades básicas de comer e beber, os hábitos locais ainda parecem prevalecer. Após duas décadas de frenética expansão internacional, o sonho de construir um negócio alimentício mundial está morrendo.

Embora sucessos em alguns mercados individuais se destaquem - o francês Carrefour no Brasil, o americano Walmart no México ou o Tesco na Coreia do Sul - nenhuma rede de supermercados conseguiu transformar-se numa gigante verdadeiramente internacional, com operações abrangendo os maiores mercados desenvolvidos e emergentes.

"Melhorar a gestão em casa é mais importante do que fincar bandeiras pelo mundo, para tentar construir um império"

Alguns investidores se perguntam se seria melhor para o varejo de alimentos reduzir suas ambições mundiais e concentrar-se em produzir valor para os acionistas, defendendo suas posições domesticamente. "A chave para a expansão mundial é um enigma. Ninguém efetivamente matou a charada", diz Richard Black, da gestora de fundos Legal & General. "Melhor gerenciamento no mercado doméstico é mais importante do que espetar bandeiras em todo o mundo para tentar construir um império. Talvez os acionistas não queiram um império. Eles querem apenas retornos atraentes".

Se expansão internacional não é uma panaceia, os executivos de supermercados terão de continuar operando preferencialmente nas imediações de seu mercado doméstico ou expandir em áreas que vão de telecomunicações a bancos. Tudo isso acontece num momento de crescente pressão sobre os orçamentos familiares e quando os consumidores podem, cada vez mais, comparar preços na internet. A questão é se alguns dos mais importantes supermercados farão uma última aposta nas chances de predominância mundial, num esforço para extrair economias de escala e gerar mais influência sobre seus principais fornecedores. Uma iniciativa pode ser uma tentativa de aquisição, que desencadearia a reformulação radical no setor.

O alvo mais central de tais especulações é o Carrefour, a segunda maior rede, abaixo do Walmart. O grupo francês tem enfrentado dificuldades para recuperar suas operações europeias e seus acionistas têm perdido dinheiro. Até agora, o Carrefour rejeitou o desmembramento, mas poderá ter dificuldades para defender-se contra um predador disposto a fazer o serviços por ele.

Uma reestruturação dessa natureza poderia criar oportunidade para uma série de empresas adquirirem posições em novos mercados. Embora os êxitos tenham sido poucos e distantes, analistas apontam para duas aquisições que deram certo: a compra do Asda pelo Walmart, no Reino Unido, e a parceria estabelecida entre o francês Casino e o Grupo Pão de Açúcar, de Abílio Diniz.

São inúmeras as dificuldades. Embora roupas e artigos para a casa possam ser fabricados na Ásia e transportados facilmente para todo o mundo, alimentos são geralmente perecíveis e de difícil transporte. O Walmart e o Asda colaboram na compra de mercadorias, como bananas. Mas o espaço para essa cooperação continua limitado por cadeias de suprimento locais, expectativas e gostos.

Na Califórnia, o Tesco descobriu que alguns consumidores rejeitam frutas e legumes pré-embalados. Apesar de acreditar que esse formato coloca o produto mais fresco à disposição dos consumidores, a empresa agora experimenta colocar à venda produtos a granel, uma apresentação mais comum nos supermercados americanos.

No Brasil, o Walmart tem lutado para convencer os consumidores a "comprar" seu mantra "preço baixo todo dia", ao contrário da estratégia mais usual de jogar com descontos e remarcações.

As empresas que jogam pesado com descontos - que também embarcaram numa expansão internacional - podem assumir diferentes formas fora de seus mercados de origem. Na Trader Joe's, rede americana familiar de um dos irmãos alemães por trás do Aldi, os funcionários usam camisas havaianas, os rótulos identificadores nas bordas das prateleiras parecem escritos à mão e as paredes são enfeitadas com murais coloridos. "É fracasso certeiro no ramo alimentício comprar um produto uniforme e tentar distribuí-lo em regiões étnica e economicamente diversificadas, mesmo num país como os EUA", diz Jim Prevor, que dirige o Perishable Pundit, um blog que comenta sobre o setor de supermercados americano. "Se há alguma tendência, é no sentido de compra mais regional e local".

Uma vez que as economias de escala mundiais se revelam difíceis de se manter, os grandes supermercados cada vez mais reconhecem que o que conta é presença local. Para ganhar em cada mercado, eles precisam ser pelo menos o número dois e, de preferência, o número um. O Carrefour vendeu suas operações na Tailândia para o Casino no ano passado e tentou vender suas operações na Malásia. Restam dúvidas quanto a seu engajamento na Polônia e na Turquia. A Tesco está saindo do Japão e não há dúvidas sobre se vai continuar a perseguir o sonho americano. "É melhor ser forte em poucos países do que fraco em muitos", diz Dave McCarthy, analista da Evolution Securities, em Londres.

No entanto, o Walmart, o Carrefour e o Tesco estão, todos, sob pressão em seus próprios quintais, onde concorrentes mais ágeis vêm beliscando seus calcanhares. "Nenhuma dessas companhias têm operações internacionais suficientemente grandes para que possam ignorar seus mercados domésticos", diz Christopher Hogbin, analista da Bernstein Research.

Algo que puxa os varejistas de alimentos no sentido oposto é o crescimento tentador de alguns mercados emergentes. China, Brasil e Índia - apesar de terem sido interrompidos os planos de abertura do mercado de varejo indiano, que movimenta US$ 450 bilhões - estão a caminho de tornarem-se campos de batalha reais, possivelmente tornando as regiões mais periféricas menos interessantes.

"Se algum dos grandes grupos internacionais pudesse fazer uma dieta à base de esteroides e realmente acelerar suas participações nos mercados emergentes mais desejáveis, isso seria um poderoso catalisador de ação empresarial", diz Christine Cruz, da consultoria PwC,.

À medida que a crise econômica mundial coloca todos esses fatores em evidência, a dor é sentida mais agudamente no Carrefour, que no ano passado foi marcado por cinco advertências de queda nos lucros, reversões estratégicas, trocas na alta administração e um plano de fusão no Brasil que consumiu muito tempo e terminou em fracasso. É crescente o clamor pela cisão de suas atividades europeias das operações em mercados emergentes.

Lars Olofsson, marqueteiro sueco e ex-CEO da Nestlé que concebeu o Nespresso - história de sucesso da empresa suíça no mercado de cafés - e agora está dirigindo o Carrefour, tem insistido em que não está visando um desmembramento do grupo.

Mas se ele não está disposto a rachar seu império, um predador poderá fazer isso por ele. "A situação no Carrefour é tão extrema que poderá ter implicações para a existência do grupo em sua forma atual", diz Jaime Vazquez, analista do Santander, em Madrid. "O alcance mundial do grupo poderá ser colocado em xeque".

O Walmart tem sido considerado o candidato mais provável a comprador do Carrefour. O Walmart já está de olho na unidade brasileira, onde o grupo francês é o segundo maior varejista.

Mas o Walmart tem seus próprios problemas. A empresa está de olho em mercados como a China e o Brasil para compensar o fraco crescimento em casa. Mas o caminho para a lucratividade nesses mercados tem sido longo e difícil. Alternativamente, alguns analistas especializados no setor britânico de supermercados perguntam-se se o Walmart estaria disposto a vender a rede Asda, de bom desempenho - é segunda maior cadeia britânica de supermercados -, e reinvestir o dinheiro em mercados de crescimento mais rápido. Tal sugestão é rejeitada por fontes bem informadas.

Enquanto isso, o alemão Metro, quinta maior rede em todo o mundo, colocou sua cadeia de lojas de departamentos Kaufhof à venda e paira um ponto de interrogação sobre suas operações do hipermercado Real. A Metro está se concentrando em produtos elétricos e uma rede "cash & carry" que levou a 30 países, inclusive a Rússia e a China. Mas tendo à frente um novo executivo, poderá haver uma reestruturação mais radical? Alguns acreditam que a Metro poderia ser absorvida pela Tesco, que, sabe-se, tempos atrás, já andou estimando o potencial do grupo.

Por ora, porém, a questão mais prementes para a Tesco é se deveria abandonar os EUA, onde até o mês que vem a Fresh & Easy terá acumulado 700 milhões de libras esterlinas (US$ 1,1 bilhão) em prejuízos e sugado 1 bilhão de libras em capital desde sua criação em 2007, segundo previsões da corretora de ações Capital Shore.

Philip Clarke, presidente da Tesco está concedendo à empresa o benefício da dúvida. Uma investida bem-sucedida nos EUA transformaria a Tesco, criando valor para os acionistas por décadas à frente. Mas ele definiu como meta para a companhia equilibrar despesas e receitas até o fim do ano financeiro de 2012-2013. "Se até o fim de 2012 parecer que ele não conseguirá cumprir a meta, então ele poderá explorar uma joint venture ou uma venda, para tentar recuperar os prejuízos", diz Clive Black, da Capital Shore.

O Walmart pode ser um comprador imediatamente disponível da Fresh & Easy, cujas lojas são muito menores do que os típicos supermercados americanos. Esse é um formato que já está sendo testado como uma possibilidade de conquistar uma posição nos mercados urbanos nas costas leste e oeste.

Um fator que poderia colocar um freio em possíveis aquisições seria uma escalada da crise na zona do euro, impondo opacidade ao planejamento empresarial e tornando difícil o levantamento de recursos para aquisições. Mas à medida que a pressão se intensifica, as chances de um embaralhamento de carrinhos de supermercado diminuem.

Em relação à Índia, as cadeias mundiais de supermercados estão salivando há mais de uma década diante da perspectiva de entrar nesse mercado, em rápido crescimento. Mas em novembro, quando Nova Déli anunciou planos de abrir o setor à presença de companhias como Walmart, Carrefour e Tesco, as gigantes varejistas mostraram-se surpreendentemente reticentes.

Retrospectivamente, a cautela dos investidores em relação ao setor, estimado em US$ 450 bilhões, faz sentido. O partido do Congresso, atualmente no poder, foi obrigado a engavetar o marco regulatório apenas duas semanas depois de anunciado. A proposta de permitir que grupos estrangeiros controlem até 51% dos supermercados provocou protestos e paralisou o Parlamento, pois oponentes argumentaram que o novo cenário mataria as pequenas lojas pertencentes a famílias, que constituem mais de 90% do setor.

A Tesco qualificou a volta atrás como uma "oportunidade perdida". Mas o episódio sublinha os desafios que os varejistas enfrentam ao expandir no exterior, especialmente em mercados emergentes. Quem opera na terceira maior economia asiática é atormentado por riscos - o Banco Mundial coloca a Índia em 132º lugar entre 183 países, em sua classificação por facilidade de operar negócios.

Além disso, a cadeia de suprimentos é subdesenvolvida e os varejistas estrangeiros teriam que gastar grandes somas de suas receitas no desenvolvimento de instalações de armazenamento refrigerado. "A Índia poderá ou não abrir-se ao investimento estrangeiro direto", diz Andrew Kasoulis, do Credit Suisse. "O que é mais relevante é saber se um varejista ocidental moderno poderia construir uma cadeia de suprimento com parceiros locais".

Qualquer varejista mundial também teria de lidar com as atitudes peculiares ao consumidor do país. "A Índia é um mercado muito heterogêneo e qualquer planejamento de lojas, para ser bem sucedido, teria que adaptar seus produtos aos diversos gostos existentes. Um cliente em Nova Déli é muito diferente de outro em Chennai [Madras]", diz Arvind Singhal, presidente da Technopak, uma consultoria de varejo indiana.

Além disso, a maioria dos consumidores não têm acesso a métodos modernos de transporte, o que proporciona uma vantagem às pequenas mercearias de administração familiar. "Muitos [preferem] fazer deslocamentos frequentes para realizar compras menores em lojas perto de suas residências", diz um executivo da cadeia de hipermercados Trent, de propriedade do conglomerado indiano Tata.

Entretanto, existem poucos locais nas maiores cidades suficientemente grandes para um varejista estrangeira estabelecer-se. Aquisição de terrenos é também extremamente cara.

Não admira que a reação aos planos de liberalização tenha sido mudo, diz um dos maiores varejistas da Índia, que pediu anonimato. "Quem quiser vir para cá terá de ser paciente, pois não vai ganhar muito dinheiro de imediato", diz ele.



Veículo: Valor Econômico


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